Resumo
Como em qualquer área do conhecimento, os estudos realizados pelas Ciências das religiões viram-se marcados por revoluções histórico-paradigmáticas determinantes, que favoreceram o surgimento do método da Fenomenologia da Religião. O objetivo deste trabalho constitui-se, portanto, na tentativa de apresentar esse processo de revolução paradigmática, como também a caracterização do contexto favorável ao seu surgimento. Para tanto, retomaremos momentos históricos, estudiosos importantes e superações metodológicas, procurando conferir destaque ao método fenomenológico de Husserl como o possibilitador das condições de surgimento da fenomenologia do sagrado, de Otto, que, por sua vez, põe a experiência religiosa como fenômeno originário suficiente para a descrição e a avaliação do que nasce da relação do ser humano com o sagrado. A análise fenomenológica proposta por Rudolf Otto, além de superar metodologias de cunho positivista, abriu novos caminhos. Ao introduzir os conceitos de Mysterium tremendum et fascinans, o autor possibilitou aos estudos desenvolvidos na área das Ciências das religiões o contato, a valorização e a investigação das experiências puramente antropológicas resultantes da relação entre o humano e o sagrado.
Palavras-chave: Husserl; Otto; Fenomenologia.
Abstract
As well as in any area of knowledge, the studies made by the Sciences of the Religions were marked by many determinant historical paradigmatic revolutions, which came to aid the rise of the Religion's Phenomenology's method. The goal of this study is to attempt, therefore, not only the presentation of this process of paradigmatic revolution but also to reveal the characterization of the favorable context of its emergence. For all that, we will bring back historical moments and important studious man, methodological overcomes; bestowing in focus Husserl's phenomenological method as a facilitator of the emergence conditions of Otto's sacred phenomenology, who in turn, grants the religious experience originating as a sufficient phenomenon to the description and evaluation of what comes from the relationship between the human being and the sacred. The phenomenological analysis proposed by Rudolf Otto, it overcomes positivist methodologies imprint, broke new ground. By introducing the concepts of Mysterium tremendum et fascinans, the author made it possible for studies in the area of Sciences of Religions, contact, recovery and research experiences purely anthropological as a relationship between the human and sacred.
Key words: Husserl; Otto; Phenomenology.
1 Revolução histórico-paradigmática no campo das Ciências da Religião
Para uma melhor problematização e, até mesmo, para favorecer um melhor entendimento do que propomos com o artigo e, devemos atentar criticamente para as seguintes questões: O que é Fenomenologia? O que é Fenomenologia da Religião? O que se deve entender por "revolução fenomenológica"? O que se deve entender por experiência religiosa?
A história das ciências das religiões viu-se marcada por uma considerável revolução paradigmática. Aconteceu uma passagem do método denominado comparative religion, que consistia em, por meio de comparações, evidenciar os elementos comuns entre crenças e ritos das variadas religiões, visando a identificação do que unia todas elas, para o método ligado à fenomenologia, de Husserl. Com este novo método são retomados, para as ciências das religiões, dois conceitos fundamentais da fenomenologia de Husserl: a epoché ea redução eidética.
O termo Fenomenologia da Religião foi usado, pela primeira vez, em 1878, pelo holandês Chantepie de la Saussaye, professor de História das Religiões de Amsterdã. Guiado pelo pressuposto de que o objeto das Ciências das religiões seria sua unidade na multiplicidade de suas formas, o estudioso sustentou a tese de que, para além de uma investigação do caráter histórico das religiões, os métodos de estudos acerca de questões religiosas deveriam procurar evidenciar, acima de tudo, os vários aspectos permanentes de cada religião. Só a partir daí se tornaria possível um segundo passo, que consistiria em valer-se do método comparativo com o objetivo de atingir uma melhor identificação e classificação dos diversos grupos de manifestações religiosas.
Para Carlo Prandi e Giovanni Filoramo (1999), o esforço de Saussaye, embora tenha sido significativo para as pesquisas na área das ciências das religiões, não apresentava ainda uma completa novidade, posto que a nova veste terminológica não apresentava um novo método, mas, sim, a retomada do método comparativo que, até então, dominava os estudos da época. Tal iniciativa, embora tenha contribuído para os estudos então emergentes, encontrava-se alicerçada sobre o método comparative religion de caráter evolucionista determinante nas pesquisas de Tylor e de Frazer, que propunham evidenciar os tipos recorrentes de crenças e rituais religiosos e estabelecer sua ordem evolutiva, tendo como principal objetivo responder à pergunta fundamental que dominava todas as pesquisas da época: Qual a origem da religião?
Depois de longa caminhada, só cinquenta anos mais tarde a Fenomenologia da Religião1 viria a encontrar sua expressão mais completa, graças ao holandês Gerardus van der Leeuw. O tratamento oferecido por van der Leeuw aos estudos sobre as religiões colocou decididamente o problema da autonomia da religião, em posição contrária ao que pretendia o reducionismo positivista. Para chegar a esse objetivo, Leeuw recorreu a algumas correntes culturais alemãs2, o que posteriormente viria a criar as condições necessárias para o surgimento da filosofia da religião de Rudolf Otto. Desse modo, enquanto o primeiro paradigma - comparative religion - apresentava-se como filho do positivismo evolucionista que predominava na segunda do século XIX, o novo paradigma emergente seria filho das reações ao positivismo. Surge, portanto, desse contexto, a Fenomenologia da Religião, que, em seu sentido mais estrito, vem expressar um rompimento com a tradição, propondo a superação do evolucionismo científico e, consequentemente, do positivismo. Esse período fecundo e conflituoso localiza-se historicamente nos anos que antecedem a Primeira Guerra Mundial. Nesse contexto, veio às claras a importante virada fenomenológica, a qual encontraria sua expressão máxima na fenomenologia filosófica de Edmund Husserl.
De Chantempie a van der Leeuw temos as condições históricas de observação dos conflitos metodológicos e inovações teóricas que favoreceram uma formação sistemática da Fenomenologia da Religião. Contudo, como nada se dá subitamente, do ponto de vista histórico, sem antes se terem sido criadas as condições suficientes de surgimento, acreditase que o fundador, propriamente dito, da escola fenomenológica, foi Rudolf Otto, que, em seu livro O sagrado (1917), ofereceu um modelo excelente de análise fenomenológica, em chave hermenêutica, da experiência religiosa. Dessa forma, a obra de Otto tornou-se significativa porque demonstra, de forma contundente, o cruzamento de interesses e problemas típicos da tradição alemã, cruzamento, aliás, devido ao fato de que, na Alemanha, os estudos fenomenológicos surgiram, afirmaram-se e continuaram a ser praticados (FILORAMO; PRANDI, 1999), de forma a contribuir significativamente com o pensamento intelectual do Ocidente3. Assim, como nos propomos a desenvolver uma reflexão sobre as condições histórico-intelectuais favoráveis ao surgimento do método da Fenomenologia da Religião, devemos nos direcionar, precisamente, à contribuição de Otto nesse processo, como também ao contexto histórico-intelectual que permitiu ao autor suas construções teóricas.
2 Do contexto histórico-intelectual favorável
Rudolf Otto atuou como professor na Universidade de Göttingen de 1897 a 1907 e, de 1901 a 1907, foi colega de Edmundo Husserl na mesma universidade. Foi este exatamente o período em que Husserl lançava seu método de investigação filosófica, que posteriormente se tornaria conhecido como método fenomenológico. Visto a contemporaneidade dos autores, poderíamos, então, perguntar: até que ponto Otto traz, em sua obra, uma fenomenologia nos parâmetros propostos por Husserl? A pertinência dessa pergunta torna-se central pelo reconhecido fato de, em nenhum momento de sua obra, Otto fazer referência à fenomenologia.
O tratamento oferecido por Otto aos problemas enfrentados pelas ciências das religiões na obra O sagrado o fez desembocar numa fenomenologia do sagrado4. Segundo Birck, "este fato foi reconhecido pelo próprio Husserl, criador do método, em uma carta a um amigo: Otto faz uma aplicação magistral do método fenomenológico ao religioso" (BIRCK, 1993, p. 9). Da parte de outros estudiosos das ciências das religiões, tais como Giovani Filoramo e Carlo Prandi, a consciência do uso do método fenomenológico de Husserl por Otto não está, intencionalmente, na origem de seu trabalho. Assim, embora o livro O sagrado tenha favorecido o surgimento de uma Fenomenologia da Religião, a rigor, ele não é uma obra fenomenológica. Contudo, a iniciativa ottoniana tornou fenomenólogos os estudiosos, alunos, amigos e sucessores seus que se propuseram a continuar sua obra, pesquisando um método fenomenológico que permitisse, primeiro, através da comparação e, depois, através da compreensão, compreender a essência do fenômeno religioso. (FILORAMO; PRANDI, 1999, p. 37).
Embora seja possível uma problematização em relação às possibilidades e impossibilidades de um método fenomenológico presente na obra de Otto, jamais se fará possível a exclusão do autor do contexto intelectual vivido também por Husserl. Uma filosofia nunca nasce alheia aos problemas de seu tempo. A discussão de Otto investe, embora com diferentes enfoques, rumo aos mesmos problemas identificados por Husserl, tais como as ciências positivas e o psicologismo. Encaminhemo-nos agora para o que nos propõe o método fenomenológico de Edmund Husserl para podermos observar de que forma tal paradigma pode contribuir para os debates levados em frente pelas ciências das religiões.
Edmund Husserl5 ficou conhecido como o pai da fenomenologia. Tem como princípio orientador de sua teoria a ideia cartesiana de fundamentação radical da filosofia e das outras ciências. É com este intuito que desenvolve o método fenomenológico, procurando, dessa forma, descrever o mundo acuradamente, tal como aparece na consciência. Por meio de um uniforme e sistemático processo, traçou como meta chegar a um conhecimento absolutamente verdadeiro.
Não diferente de Otto, Husserl lança fortes críticas contra o positivismo, o psicologismo e o naturalismo que imperavam no século XIX. Para Husserl, nem o psicologismo nem o empirismo são capazes de resolver os problemas fundamentais da teoria do conhecimento, uma vez que não podem mostrar, objetivamente, as possibilidades de o sujeito cognoscente alcançar, com certeza e evidência, as realidades que lhe são exteriores. No que diz respeito à crítica husserliana, dois aspectos básicos tornam-se centrais: "a) o esquecimento do sujeito e de seu mundo vital; b) a perda da dimensão ética, pois o método matemático objetivista renuncia explicitamente a tomar posição sobre o mundo do dever ser" (ZILLES, 2001, p. 514). Assim todas essas tendências esbarram na impossibilidade de fundamentação de um conhecimento universal e necessário. Para Husserl, o conceito positivista de ciência acabou por colocar em segundo plano todas as questões que constituem os problemas últimos e primeiros da teoria do conhecimento. Mais que isso, os ideais científicos passaram a antecipar o próprio mundo-da-vida6 (Lebenswelt): "mundo histórico-cultural concreto, sedimentado intersubjetivamente em usos e costumes, saberes e valores, entre os quais se encontra a imagem do mundo elaborada pelas ciências" (ZILLES, 2001, p. 511); âmbito de todas as experiências originárias da formação dos sentidos, "mundo do subjetivo do qual emerge toda atividade humana" (ZILLES, 2001, p. 513) e que antecede a própria ciência.
O teórico divide, portanto, a ciência em ciências fáticas, apoiadas na experiência sensível, e ciências de essências ou eidéticas, às quais compete a intuição essencial (Wesensschau). Procura mostrar, dessa forma, que o conhecimento se inicia com a experiência das coisas existentes, dos fatos e de tudo o que temos à nossa volta; mas, ao mesmo tempo, teríamos de considerar que sempre que um fato se apresenta à consciência, junto a ele captamos também a sua essência. Partindo dessa constatação, Husserl propõe uma nova postura em relação ao conhecimento: "pôr entre parênteses a tese natural do mundo" (MENDONÇA, 2000, p. 140), a qual se deve iniciar com a completa ausência de pressupostos. Assim, "o novo método de reflexão filosófica chamar-se-á redução fenomenológica porque reduz todo o ser à pureza do ser-fenômeno e fará passar todo o conhecimento perante o tribunal da evidência do cogito" (KELKEL; SCHÉRER, 1982, p. 38). O filósofo propõe um retorno às coisas mesmas, para o que se faz necessário abrir mão de modelos de ciência, ou mesmo de evidências e verdades dadas antecipadamente em relação às coisas. Sua intenção é a de inaugurar um processo de redução ao cogito puro, pois somente com base nos dados imediatos da consciência pura é que podemos encontrar fundamentos seguros para a ciência primeira. Husserl (1978) está convencido de que, do ponto de vista da intenção final, a ideia de ciência e de filosofia implica uma ordem de conhecimentos anteriores em si, referidos a outros em si posteriores e, no fim de contas, um começo e um progresso, começo e progresso não fortuitos, pelo contrário, fundados na natureza das próprias coisas. Uma ciência primeira, na proposta husserliana, deve ter como fundamento dados indubitáveis, pois somente com base nesses dados é que se pode construir um edifício filosófico consistente. Husserl diz que a coisa não é apenas visada de forma longínqua e inadequada. Ela é-nos presente, ela própria, e o sujeito que julga tem dela, portanto, consciência imanente.
Após esse momento, Husserl parte em busca de uma maior consistência para os recursos da evidenciação, chegando, então, à evidência apodítica, "cujo campo é o a priori no seio do ser dado imanente" (KELKEL; SCHÉRER, 1982, p. 38). Tal evidência não deve simplesmente nos apresentar o objeto dado ao modo da própria coisa, mas, sobretudo, fornecer a absoluta certeza da existência do ser deste objeto "dado na clareza absoluta da imanência da consciência no sentido autêntico" (KELKEL; SCHÉRER, 1982, p. 38). Em nenhum momento tal objeto poderá ser pura aparência ou até mesmo um não ser. Os limites da evidência apodítica vêm representar os limites do nosso saber; por isso, faz-se necessário buscarmos coisas tão manifestas e fenômenos tão evidentes que, de maneira alguma, possam ser negados. Temos aqui um importante momento da filosofia husserliana, pois, cientes da existência de preconceitos e juízos preestabelecidos, como também da possibilidade de retorno à coisa mesma, faz-se necessário que todos os preconceitos existentes sejam suspensos, principalmente em relação ao que não é apodítico. Nessas condições, a atitude do fenomenólogo passará a ser, necessariamente, a de quem se dirige ao eidos (essência), que precisa ser captado diretamente.
Saindo da proposta de uma evidência apodítica, chega-se ao momento último, o qual consiste no apoderamento das próprias coisas. Notamos claramente neste momento o objeto de estudo da filosofia fenomenológica, o qual consiste exatamente nos objetos constituídos por conexões essenciais, por meio de um método usado na descrição das essências. Sobre isso afirma Husserl:
Se nos representarmos, portanto, a fenomenologia sob a forma de ciência intuitiva apriorística, puramente eidética, as suas análises apenas desvendam a estrutura do eidos universal do ego, transcendental, que abarca todas as variantes possíveis do meu ego empírico e, portanto, esse próprio ego, enquanto possibilidade pura. A fenomenologia eidética estuda, portanto, o a priori universal, sem o qual nem eu, nem nenhum outro eu transcendental em geral, seria imaginável; e na medida em que toda a universalidade essencial tem o valor de uma lei inviolável, a fenomenologia estuda leis essenciais e universais que determinam previamente o sentido possível (com o seu oposto: o contra-senso), de qualquer asserção empírica referente ao transcendental. (HUSSERL, 1978, p. 95-96).
Partindo daqui, Husserl propõe o método da epoché e chega, então, ao momento da redução eidética, ou seja, "redução de todos os nossos conhecimentos científicos e filosóficos" (ZILLES, 2001, p. 21). Contudo, para a concretização desse momento é preciso uma profunda mudança em relação à vida natural e espontânea, o que, para Husserl, consiste na redução do eu humano natural e da vida psíquica (domínio da experiência psicológica interna) ao eu transcendental e fenomenológico (domínio da experiência interna transcendental e fenomenológica). Assim, o mundo objetivo que existe, existiu ou existirá com todos os seus objetos, e extrai do próprio sujeito todo o sentido e valor existencial provenientes do eu transcendental, o único capaz de revelar a epoché fenomenológica (1978, p. 39). Pela epoché "começamos a duvidar das crenças acerca da transcendência, desenvolvidas pela subjetividade mundana e pelos ensinamentos que nos foram transmitidos a respeito das coisas, sedimentados pela tradição e pela cultura" (ZILLES, 2001, p. 20). Chega-se, portanto, a um novo âmbito, que na maioria das vezes é pouco atingido, o âmbito da vida transcendental da consciência, no qual a estrutura da consciência enquanto intencionalidade, vem reforçar o desejo de uma fundamentação absoluta, uma vez que toda consciência é consciência de algo.
Quando amparado pelo método da epoché, o fenomenólogo coloca o mundo entre parênteses, livra-se dos preconceitos e das opiniões preestabelecidas e investe contra as próprias coisas. "O aspecto positivo da epoché é a abertura que ela propicia, para a entrada no campo transcendental, tanto da subjetividade quanto dos fenômenos. Sendo que o mundo torna-se um cogitatum ou objeto da experiência do Ego transcendental" (ZILLES, 2001, p. 21). Dessa forma, o que foi colocado entre parênteses não perde sua validade, nem é suprimido, mas passa a valer como simples fenômeno. É nesse momento que a vivência ingênua e natural dá lugar à consciência transcendental. Acrescenta Zitkoski:
A partir da epoché há uma modificação de valor e/ou uma alteração de sentido nas vivências da consciência. O eu reflexivo não toma mais posição, não considera mais a crença da atitude natural como válida. E isso é efetuado com o fim último de isolar o transcendente que está fora da corrente intencional da consciência e ficar apenas com o que está presente de forma imediata na consciência. Toda e qualquer transcendência só terá validade e/ou sentido para a fenomenologia enquanto estiver presente na imanência da consciência, ou seja, enquanto é fenômeno. (ZITKOSKI, 1994, p. 38)
Pela epoché encontra-se aberto um vasto campo possibilitador da investigação direta dos fenômenos que se constituem na esfera transcendental da consciência. O conjunto infinito dos fenômenos passa a ser constituído a partir da atividade intencional da consciência, na qual toda realidade só é em relação à consciência. Em Husserl a epoché assume o lugar da dúvida cartesiana, uma vez que, além de levantar dúvidas, incide na supressão de juízos, supressão da atitude natural, ou seja, de tudo o que vem sendo formado de antemão pelas doutrinas filosóficas e científicas, até mesmo sobre a nossa própria vida cotidiana.
Até aqui foram problematizadas as possibilidades e impossibilidades de uma fenomenologia a partir da proposta de Otto e apresentadas as ideias fundamentais que formam o corpo da fenomenologia husserliana. O item que segue será dedicado à consideração da proposta de uma fenomenologia do sagrado em Otto, tendo em vista a fenomenologia de Husserl.
3 A Fenomenologia do sagrado de Rudolf Otto
3.1 O racional e não-racional na ideia de sagrado
Numa tentativa de problematizar a respeito do que Otto nos propõe, partiremos dos seguintes questionamentos: Quais os limites entre o racional e o não-racional? Qual a importância do numinoso para a razão? Qual o lugar da razão no contexto do sagrado? O racional é negativo? Que faceta da razão é criticada pelo autor? De que modo a teoria ottoniana desemboca numa fenomenologia? Para Otto, o sagrado apresenta-se como uma categoria complexa, que se constitui de dois elementos importantes: o elemento nãoracional, definido por ele como o numinoso, e o elemento racional, que é o predicador. Ao lançar sua crítica em relação ao racional presente na ideia de sagrado, o autor quer mostrar que enunciados, conceitos e definições, por mais claros que transpareçam, em nenhum momento explicam por completo o sentimento religioso, o sagrado, a religião. Por este caminho, Otto procura resgatar, para a filosofia da religião e a teologia do século XX, o elemento não-racional - numinoso - da religião, encoberto pelo excesso de racionalização próprio da cultura ocidental. Assim, o resgate do que pode ser tomado como essência da religião coincide com a necessidade de compreendê-la como uma experiência humana originária. Torna-se necessária, portanto, a redescoberta do núcleo central da religião, uma vez que a ênfase intelectualista, ao ressaltar as características conceituais na ideia de Deus, acabou por contribuir com o obscurecimento de seu núcleo não-racional.
Essa se constitui na principal investida de Otto. Contudo, não é intenção do autor colocar a religião fora do plano racional, mas resgatar na ideia de Deus, o que fora perdido pelo racionalismo. Otto busca desenvolver uma análise dos elementos racionais e nãoracionais que compõem o sagrado e observar as intrínsecas relações existentes entre eles, apresentando o sagrado como uma categoria complexa composta. Para o autor, tal complexidade decorre precisamente de sua composição, que se dá na relação entre o elemento não-racional, o numinoso, e o elemento racional, o predicador. Nessa perspectiva, o não-racional é tomado em seu sentido mais profundo, dando a entender o que, em sua obscura profundidade, escapa à explicação racional, não se valendo de um simples e emática Livre -Artigo: Rudolf Otto e Edmund Husserl: considerações acerca das origens do método da Fenomenologia da Religião equivocado sentido, no qual o não-racional aparece apenas como o que ainda não se encontra sob o controle da razão. Como diz o próprio Otto:
Por irracional não entendemos o que é informe e estúpido, o que ainda não está sob o controle da razão, o que na nossa vida instintiva ou no mecanismo do mundo, é rebelde à racionalização. Partimos do sentido habitual da palavra, daquele que tem, por exemplo, quando dizemos a propósito de um acontecimento singular que, pela sua profundidade, se furta a uma explicação racional [...] Chamamos racional na ideia do divino ao que pode ser claramente captado pelo nosso entendimento e passar para o domínio dos conceitos que nos são familiares e susceptíveis de definição. (OTTO, 1992, p. 86).
Para esse autor, Deus e o sagrado não podem ser objetos da pura razão e, ainda que seja possível encontrar tais ideias presentes nas religiões, nada mais existe aí do que apenas uma ideia de sagrado carregada de noções racionais, sendo essas apenas predicados que esquematizam ou racionalizam o elemento originalmente não-racional identificado como numinoso. Via conceitos, acontece o encobrimento do numem, objeto próprio da ideia de sagrado, impossível de ser comunicado em sua totalidade por conceitos racionais. Pelo conceito apenas o indicamos analogamente, transitando por caminhos que não pertencem ao domínio da religião, como é o caso do sentimento sublime, termo emprestado do domínio estético, que apenas indica um pálido reflexo do que realmente seria a experiência religiosa. Uma compreensão verdadeira, nesse contexto, só seria possível, portanto, pelo sentimento numinoso, um estado puramente afetivo da alma, realidade que se encontra numa profunda obscuridade e escapa a qualquer tentativa de conceitualização. O que procede é que existe, da parte do ser humano, uma necessidade natural de se dirigir racionalmente ao mundo à sua volta; por conseguinte, do ponto de vista fenomenológico, acontece um acesso racional à essência não-racional própria do domínio religioso. Nesse sentido, "as noções racionais aparecem em primeiro plano como um verdadeiro esquema da essência não-racional do sagrado". (BIRCK, 1993, p. 14).
Como o elemento racional não esgota ou atinge a essência da religião, o sagrado, tal realidade pode ter sua essência apenas no elemento não-racional, ou seja, experiência religiosa enquanto sentimento numinoso. Portanto, é na experiência vivida ou experiência religiosa que se encontra o objeto próprio da religião, o numem. A experiência vivida surge como princípio para o resgate do não-racional, e a religião como o momento de encontro do homem com o sagrado, tendo, como objeto da relação religiosa, o numinoso. Assim, "o elemento numinoso, não-racional, esquematizado através das noções racionais, dá-nos a categoria complexa do sagrado no sentido pleno da palavra, na totalidade do seu conteúdo" (OTTO, 1992, p. 69). A experiência religiosa toma lugar central e apresenta-se como uma experiência sui generis, original e fundamental, algo que existe no domínio exclusivamente religioso.
3.2 O numinoso
Com a pretensão de tomar o sagrado em sua condição particularizada e elucidar sua dimensão não-racional, Otto serve-se do neologismo numinoso. O temo numinoso provém do termo latino numen, usado pelo autor para indicar características essenciais e exclusivas presentes em todas as religiões, eliminando o termo sagrado de todas as conotações éticas e racionais. O numinoso é, pois, uma categoria numinosa passível de interpretação e avaliação e, da mesma maneira, um estado da alma que se manifesta quando essa categoria se aplica. Trata-se de uma categoria absolutamente sui generis, que "compreende um elemento com uma qualidade absolutamente especial, que escapa a tudo o que chamamos racional, constituindo, enquanto tal, uma arrêton, algo inefável" (OTTO, 1992, p. 13); e, como dado originário e fundamental, é objeto não de definição no sentido estrito da palavra, mas somente do exame como qualquer fenômeno originário. O numinoso surge como o ponto de partida para a linguagem das religiões, e é sobre ele que se apóiam todos os conceitos e predicados racionais. É elemento não-racional fundante da religião e situa-se para além do racional, encontrado nas experiências vividas pela criatura diante do numem.
3.3 A descrição do numinoso
Após problematizar o racional e o não-racional presente na ideia de sagrado, Otto inicia um processo de descrição do numinoso, pondo em destaque os vários elementos que o compõem. Esse processo se constitui na tentativa de desencobrimento do sagrado, o que significa uma volta ao que é próprio de sua essência, processo que implica, portanto, uma fenomenologia, ou seja, uma volta à coisa mesma. A análise proposta por Otto desemboca, assim, na expressão mysterium tremendum et fascinans. O tremendum é sentido como o todo-poderoso, a energia; o mysterium, como o qualitativamente diferente, os dois formando contrários harmoniosos descritos como o terror incontrolável que penetra e subjuga a alma, identificados por Birck como:
Sentimentos exclusivamente religiosos não derivados de outros sentimentos naturais. Dessa forma, para descrevê-los não é possível utilizar conceitos e evoluções em forma de graduação de sentimentos naturais; só é possível identificar tais sentimentos onde acontece a experiência religiosa. Portanto, só é possível uma relação com os sentimentos naturais por meio de analogias ou de metáforas. (BIRCK, 1993, p.32)
É da relação entre o numinoso e a criatura que podem ser apreendidas as categorias do numinoso. O mysterium é sua forma; o conteúdo qualitativo é o tremendum, elemento repulsivo e aterrorizador; o fascinans, o elemento que atrai e fascina. É todo um conjunto de sentimentos que sugerem uma suprarracionalidade. O numinoso apresenta-se, portanto, como o qualitativamente diferente, exercendo sobre a criatura, ao mesmo tempo, uma repulsão e um terror demoníacos e uma atração fascinante, relação que exerce uma estranha harmonia entre contrastes.
3.4 O sentimento do estado de criatura
O sentimento, em Otto, perpassa o simples sentido de emoção, passando a ser entendido por ele como um estado afetivo, ou seja, o estado de alma da criatura diante do numem. É um sentimento, de alguma maneira, de depreciação e impotência diante da realidade majestosa e inexplicável. É o puro sentimento de finitude, "sentimento com o qual a criatura se abisma no seu próprio nada e desaparece perante o que está acima de toda criatura" (OTTO, 1992, p. 19), obtido apenas pelo efeito de uma aplicação da categoria do numinoso a um objeto real, que, como reação, faz surgir na consciência este forte sentimento de estado de criatura.
3.4.1 O tremendo
Enquanto sentimento do tremendum, o numinoso pode se manifestar em três aspectos distintos: o temor (tremendum), o poder (majestas), e a energia (orgê). O tremendum tem, no próprio termo, a maior expressão de seu significado e designa, por analogia, uma noção sentimental de medo e terror; é manifestação bruta que nasce do contato com o sinistro que penetra a alma humana. Tomado do ponto de vista primitivo, este é o momento de onde procede todo o desenvolvimento histórico da religião. O mysterium tremendum é o que causa arrepios e, em seu sentido mais profundo, significa algo oculto e estranho. É classificado por Otto como:
As formas selvagens e demoníacas que podem quase se confundir com o arrepio e o pasmo de horror experimentado diante dos espectros; com graus inferiores, manifestações brutais e bárbaras, como também uma capacidade de desenvolvimento com a qual se refina, se purifica e se sublima. (OTTO, 1992, p. 22)
Trata-se de um sentimento que mantém presença constante na alma e a deixa apenas quando há uma volta ao estado profano. Possui, por assim dizer, uma manifestação abrupta capaz de conduzir a alucinações e êxtases, uma realidade primitiva manifestada exclusivamente nos sentimentos.
Destacam-se nessa categoria três dimensões determinantes. São elas:
a) O temor místico: medo que é naturalmente sentido diante da realidade tremenda. Termo usado por Otto apenas analogamente, uma vez que a reação sentimental perante o numinoso tem uma qualidade particular, a qual, por sua vez, não deriva do medo natural. É considerado por Birck como:
Algo que faz gelar o sangue ao transparecer como algo sobrenatural, um terror místico inteiramente diferente dos estados psíquicos de medo, de angústia, de temor. Caracteriza-se assim, como um pânico espectral diferente em grau de qualidade do temor natural; um estado da alma gerado pelo terror demoníaco, preliminar do terror religioso. (BIRCK, 1993, p. 34)
Temos aqui uma conotação espectral, um terror demoníaco e sinistro que constitui a verdadeira característica das manifestações elementares da religião, o estágio mais profundo que abrange os últimos graus da interioridade do sentimento religioso. É o sentimento oriundo do contato com a grandeza, fazendo nascer aí o sentimento de aniquilamento e terror místico.
b) Majestas ou a superioridade absoluta do poder: elemento do poder, da força e da absoluta preponderância. A este elemento se chama Tremenda Majestas. É o responsável por fazer surgir na criatura um sentimento voraz de aniquilamento e depreciação, culminando na certeza de ter experimentado a soberania absoluta. A manifestação do numem no sentimento numinoso do tremendo manifesta-se como poder e força, relacionando-se diretamente com o sentimento do estado de criatura, ocasionador de um estado de humilhação da criatura diante do poder da majestas divina. É o sentimento que dá origem à humildade religiosa, ao reconhecimento de impotência perante a uma absoluta superioridade de poder ocasionado pelo sentimento nadificador da criatura.
c) Orgê ou a energia do numinoso: a este elemento se referem as expressões simbólicas de vida, de paixão, de sensibilidade, de vontade, de força, de movimento, de excitação, de atividade, de impulso. Trata-se de um elemento vivo do misticismo, no qual a energia se manifesta em sua poderosa vitalidade, força numinosa que "aparece particularmente no misticismo do amor. É o Deus que é fogo, de ardor devorante; é o Deus de amor impetuoso" (BIRCK, 1993, p. 40). É uma energia que provoca na criatura um estado de excitação que, diante de uma potente vitalidade, vê-se com a alma cheia de ardor e vida.
3.4.2 O mistério
Outro elemento do numinoso é o mysterium, que ao longo da história de cada religião passa por um processo de evolução interna. Três graus podem ser destacados nesse processo evolutivo: o de surpreendente - puro e simples -, o de paradoxo e o da antinomia. No primeiro momento acontece a simples surpresa do incomum, do incompreensível; surge o totalmente outro, o mirum, que foge ao entendimento e transcende as nossas categorias. No segundo momento, não só ultrapassa nossas categorias, como também as torna impotentes; mantém uma relação paradoxal entre o que não é apenas não-racional, mas também antirracional. E no terceiro momento, mais do que paradoxal, tal relação se mostra antinômica; os enunciados que se opõem à razão indicam o mesmo objeto e acabam formando antíteses inconcebíveis e irredutíveis. O mistério é, pois, a noção principal do objeto numinoso; não se identifica com o tremendum, mas mantém uma relação com este, na qual o tremendum surge como um predicado sintético do mysterium, que, por sua vez, é a forma do objeto numinoso, e o tremendum é sua qualidade positiva. Trata-se, portanto de uma realidade que, segundo Otto, encontra sua expressão mais exata como "totalmente outro", correspondendo àquilo que nos é estranho e nos desconcerta; que está absolutamente fora do domínio das coisas habituais compreendidas. É o que se opõe à ordem das coisas familiares e, por isso, nos enche do espanto que paralisa (OTTO, 1992). Todo um sentimento gerado porque os limites da criatura se chocam com o que é qualitativamente diferente, uma realidade que, por essência, mostra-se totalmente incomensurável e diante da qual a criatura manifesta um estupor, um espanto paralisador.
3.4.3 O fascinante
Até aqui foram descritos o elemento repulsivo, que é o tremendum, e também o conteúdo qualitativo, que é o mysterium. O próximo passo é chegar a outro elemento determinante: o fascinante. Este é o elemento que fascina e, junto ao tremendum, exerce uma estranha harmonia entre contrastes: "algo que exerce uma atração particular, que cativa e fascina e forma com o elemento repulsivo do tremendum, uma estranha harmonia de contrastes" (OTTO, 1992, p. 49). Percebe-se aqui o duplo caráter do numinoso, que se faz presente em todas as religiões: ao mesmo tempo em que o divino, sob a forma do demoníaco, é para a alma o objeto de terror e horror, mais ele atrai e encanta a criatura. Nessas condições, o mistério surge como o que, além de surpreendente e maravilhoso, arrebatador e repulsivo, seduz e cativa. O elemento fascinante trata-se, portanto, de um elemento não racional, não conceitualizável, com um conteúdo inesgotável, alcançado apenas por analogias.
Ao elemento fascinans associam-se ainda dois componentes que despertam para a profundidade e inacessibilidade do numinoso: o augustus ou sanctum eo sebastos. Ambos expressam a mais alta qualidade do numinoso, ou seja, a santidade absoluta. Para Otto, o sentimento do sanctum pode existir em sua profunda humildade sem ser necessariamente transpassado pela obrigação moral. Contudo, sua manifestação exige um respeito incomparável, no qual se deve reconhecer o objetivo supremo (1992, p. 77). Junto a esta experiência surge o sebastos, que designa o caráter ilustre e nobre, a essência numinosa; é o valor numinoso que envolve o ético e o moral e, quando contrariado pelo não valor, o adverso, incide na ilegalidade ou pecado, produzindo sentimento de culpa.
3.4.4 O sentimento religioso como um a priori
Qual a novidade filosófica trazida por Otto? Quais as possibilidades de uma experiência para além do racional? Onde se localiza a razão no contexto do sagrado? Rudolf Otto não pretende cair num irracionalismo. Mesmo usando de uma simbologia conceitual em lugar de noções claras e definidas, desenvolve uma doutrina rigorosa com um profundo rigor científico. Acredita que na história das religiões houve uma supremacia do elemento racional em relação ao não-racional e defende uma estreita relação existente entre eles. Assim, ao tematizar os elementos racionais e não-racionais da categoria do sagrado como elementos a priori, procura captar e identificar o numinoso assim como se manifesta nos sentimentos. A ideia básica seguida pelo autor é a de que a religião não está sob a dependência do telos - finalidade - nem do ethos - moral - e não vive apenas de postulados; dessa forma, o que nela há de irracional tem uma origem independente e mergulhada diretamente nas profundidades ocultas do espírito.
Os elementos não-racionais que compõem o numinoso encontram-se numa região ainda mais profunda que a razão pura. É esse o pressuposto que pode explicar o nascimento e evolução das religiões, o qual consiste na predisposição da alma humana para o religioso, uma fonte latente arraigada antropologicamente, manifesta sob as ações dos objetos que causam excitação e dão margem a todas as manifestações religiosas que marcam a história da humanidade. São elementos e sentimentos absolutamente puros, fonte de representações e sentimentos oriundos de um conteúdo excessivo; princípios a priori, que, ao longo da história das religiões, vêm juntando os elementos não-racionais aos racionais. Estes se referem aos primeiros a partir de uma esquematização e conceitos, o que dessa forma justifica toda a relação do racional e não-racional no contexto do sagrado. Nesse contexto, a predisposição surge como fonte ou princípio, de adquirir sentimentos: um instinto religioso. É algo absolutamente não-racional mantendo relação com o racional; uma realidade absolutamente sui generis, um sentimento puro, possuidor de uma essência específica.
3.5 A fenomenologia do sagrado de Otto e os pontos comuns com fenomenologia de Edmund Husserl
Embora Otto em nenhum momento faça referência ao uso de um método fenomenológico, é considerável sua proximidade com o método de Husserl. Para Otto, o numinoso é o objeto onde se apoiam os predicados racionais, e é no sentimento numinoso que a experiência religiosa tem sua raiz. Partindo de um ponto de vista fenomenológico, pode-se dizer que os predicados racionais encobrem o numinoso - a coisa -, que, por sua vez, é possuidor de uma essência - raiz -, localizada exatamente na experiência religiosa. Assim, a essência da religião encontra-se no elemento não-racional, que para Otto não pode ser conceituado; contudo, como qualquer fenômeno, pode ser descrito, indicado e avaliado. O sentimento numinoso é, portanto, a experiência religiosa tal como nos aparece na consciência, da qual "devo realizar um ato de ideação e intuir a essência de minha vivência." (BIRCK, 1993, p. 23).
Husserl acredita que é na passagem da consciência particular para a consciência geral que se chega à consciência pura. Em Otto essa realidade é identificada como sentimento puro e surge do vivido pela criatura em relação ao numinoso. Husserl busca com sua fenomenologia a evidência da subjetividade transcendental pela descrição dos fenômenos. Otto, em sua fenomenologia do sagrado, ruma em busca da essência do divino fora do elemento racional, e o faz pelo viés da descrição do sentimento numinoso. Com a descrição do sentimento numinoso, Otto acredita estar especificando os elementos essenciais do objeto numinoso e reconhece no sentimento numinoso uma estrutura a priori, realidade absolutamente sui generis, possuidora de uma essência específica.
Segundo Birck, a fundamentação para a estrutura a priori dos sentimentos é possível a com base na fenomenologia de Husserl. O método fenomenológico surge como contestação ao método experimental, especialmente para as ciências humanas. Husserl nega tanto a pura subjetividade como a pura objetividade; portanto, ao contestar o método das ciências positivas, propõe a volta às coisas mesmas. É um movimento em direção ao fundamento do conhecimento que encontramos na consciência intencional, ou no fenômeno. Portanto, a fenomenologia é o método que procura descrever acuradamente o mundo como aparece na consciência, uma vez que a consciência é sempre intencional, ou seja, nem pura subjetividade nem pura objetividade, mas sempre consciência de algo. (BIRCK, 1993, p. 23).
De que forma, então, Otto propõe uma fenomenologia? Em que princípios se sedimenta? A proposta de Otto em relação ao sagrado é a de captar, embora por meio analógico e descritivo, o que se encontra na categoria numinosa para além do racional. Na tentativa de chegar à coisa mesma, acaba por sugerir uma fenomenologia do sagrado, que se expressa claramente quando a categoria numinosa surge como uma noção fundamental que expressa o caráter próprio do objeto, posto que "o objeto numinoso é apreendido por um conhecimento a priori, que se chama predisposição ou sentimento numinoso." (BIRCK, 1993, p. 75-76).
A categoria numinosa introduzida por Otto nos estudos das Ciências das religiões apresenta-se como uma percepção categorial. Sobre isso considera Otto:
É preciso admitir que, no princípio da evolução que constitui a história das religiões, existem certas coisas estranhas que precedem como um átrio e que, mais tarde, exercem ainda sobre ela uma profunda influência. Tais são as noções do puro e do impuro, a crença nos espíritos e o seu culto, a magia, as lendas e os mitos, a adoração de objetos naturais, terríveis e surpreendentes, prejudiciais ou úteis, a singular ideia do poder (orenda), o feiticismo e o totemismo ou o polidemonismo. Em todas estas coisas, por mais diferentes que sejam umas das outras, aparece, claramente visível, um elemento comum em que se reconhece facilmente um numinoso. (OTTO, 1992, p. 155).
A categoria numinosa seria, assim, uma noção fundamental, uma primeira posse ou vivência primeira, o não-racional, o pré-refletido, que nos oferece a possibilidade de uma visão categorial da essência divina. Por esse caminho chega-se ao sentimento religioso como sentimento puro, um princípio a priori, sui generis, possuidor de uma essência específica, que possibilita a e descrição da consciência religiosa enquanto consciência pura.
Com sua teoria, Husserl propõe uma volta às coisas mesmas e oferece as possibilidades de descrição e avaliação dos fenômenos tais como aparecem na consciência. Semelhante a Husserl, Otto propõe a volta ao objeto numinoso, uma vez que o sentimento religioso é por completo a priori, uma predisposição da alma que percebe o objeto numinoso no sentimento; o essencialmente outro transcendente ao sujeito e perceptível apenas pelo sentimento religioso. É um sentimento que se relaciona diretamente na consciência a um objeto que se encontra fora do sujeito. Nessa ideia encontramos implicada o sentido de consciência intencional proposta por Husserl. Portanto, "a concepção ottoniana do sagrado supõe a estrutura intencional da consciência; uma consciência constituinte, que funda desde si mesma a manifestação de seu objeto" (BIRCK, 1993, p. 131), apoiada principalmente no conteúdo correspondente que o sentimento numinoso faz surgir na consciência intencional. É percorrendo esse caminho que a fenomenologia husserliana proporciona uma fenomenologia do sagrado em Rudolf Otto. Assim, o método fenomenológico aplicado ao divino oferece à filosofia da religião a possibilidade de uma investigação do sentimento religioso tal como ele aparece na consciência e, por conseguinte, uma investigação do que compõe a essência da religião.
1 O fenômeno (do grego to phainomenon) é, literalmente, "aquilo que aparece", "que se mostra". Essa primeira constatação comporta uma tríplice consequência: 1) existe alguma coisa; 2) dela se mostra; 3) ela é um "fenômeno" justamente pelo fato de se mostrar. Em outros termos, o fenômeno, contrariamente às coisas (o objeto fetichista do positivismo), não é, para van der Leeuw, nem simplesmente um objeto (ou, pior ainda, o objeto e, portanto, "a realidade") nem algo puramente subjetivo, mas o produto de encontro entre sujeito e objeto; ou, usando as palavras do próprio van der Leeuw, "o fenômeno é ao mesmo tempo um objeto que se refere a um sujeito e um sujeito em relação com o objeto". Segue-se que "toda a sua essência consiste em mostrar-se, em mostrar-se a alguém". Por isso, "tão logo alguém começa a falar de algo que se mostra, já se dá a fenomenologia. A fenomenologia é, pois, a discussão sistemática do que aparece. Em sua manifestação, o fenômeno conhece três etapas: 1) ele está (relativamente) escondido; 2) manifesta-se progressivamente; 3) torna-se (relativamente) transparente. A essas três etapas correspondem, pelo lado do estudioso, como vimos, as três fases do método fenomenológico: 1) a experiência vivida ou Erlebnis do fenômeno religioso que questão; 2) a sua compreensão ou Verstehen; 3) o testemunho ou Bezeugung. (Cf. FLORAMO; PRANDI, 1999, p. 35).
2 Leeuw sublinha - na linha de outros estudiosos da religião, como Rudolf Otto ou Nathan Södrerblom , mas também de filósofos e psicólogos existencialistas, como Karl Jasper, Eduard Spranger, Ludwig Binswanger - a centralidade da "experiência" religiosa: a religião é, antes de tudo, "experiência" vivida. (Cf. FILORAMO; PRANDI, 1999, p. 32).
3 Conforme Mendonça (2000), a Fenomenologia da Religião situa-se naquele ambiente de revisão das estruturas epistemológicas com que o século XX se inicia. Assim, o ambiente da fenomenologia leva os estudiosos da religião a superar as velhas ideias a respeito da origem e da história da religião, às vezes dentro dos quadros do evolucionismo positivista. A questão da religião passa a ser posta, então, no esquema da essência e da forma e pretende partir da filosofia como ciência rigorosa, com seu respectivo método e, assim, situa-se num absoluto a priori em relação às demais disciplinas, como a história, a antropologia e a sociologia. A Fenomenologia da Religião passa a ser, portanto, uma disciplina filosófica, e no quadro mais estrito de Husserl, o núcleo em torno do qual se poderia erigir uma ciência da religião.
4 Conforme Usarski (2004), Rudolf Otto foi o criador do neologismo alemão numinoso, termo derivado da palavra latina numen e empregado para designar a forma mais abstrata do sagrado, tema central e título da sua obra magna.
5 Criador da fenomenologia, Husserl (1859 - 1938) nasceu em Prosznitz, na Morávia, estudou Matemática e Filosofia nas Universidades de Leipzig, Berlim e Viena. Foi professor nas universidades de Halle, Göttingen e Freiburg.
6 Conforme Zilles (2001), mundo da vida, no sentido experimentado pelo homem, significa uma realidade rica, polivalente e complexa, que o próprio homem constrói; contudo, ao mesmo tempo, o homem é constituído pelo Lebenswelt: história, linguagem, cultura. Trata-se, portanto, de um mundo de experiências subjetivas imediatas, dotado em si mesmo de sentido e finalidades, pré-dado para a explicação conceptual; possuidor de um índice temporal ou histórico, o qual representa a dimensão interior do sujeito e da história.
Referências
BIRCK, B. O. O sagrado em Rudolf Otto. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993.
MENDONÇA, A. G. Fenomenologia da experiência religiosa. In. CASCTRO, D. S. P. et al. (Org.). Fenomenologia e análise do existir. São Paulo: Sobraphe, 2000.
FILORAMO, G.; PRANDI, C. As ciências das religiões. São Paulo: Paulus, 1999.
HUSSERL, E. Meditações cartesianas: introdução à fenomenologia. Porto: Rés, 1978.
KELKEL, A. L.; SCHÉRER, R. Husserl. Lisboa: Edições 70, 1982.
OTTO, R. O sagrado. Lisboa: Ed. 70, 1992.
USARSKI, F. Os enganos sobre o sagrado: uma síntese da crítica ao ramo "clássico" da Fenomenologia da Religião e seus conceitos-chave. Rever: Revista de Estudos da Religião, São Paulo, n. 4, p. 73-95, 2004.
ZILLES, U. Os conceitos husserlianos de "lebenswelt" e teleologia. In. SOUSA, R. T.; OLIVEIRA, N. F. (Org.) Fenomenologia hoje: existência, ser e sentido no alvorecer do século XXI. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.
ZITKOSKI, Jaime José. O método fenomenológico de Husserl. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994.
Raimundo José Barros Cruz*
Artigo recebido em 03 de dezembro de 2009 e aprovado em 22 de março de 2010.
* Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo. Graduado em Filosofia (URI/UPF), Teologia (ITEPA) e Música (UPF). E-mail: [email protected]
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Copyright Pontificia Universidade Catolica de Minas Gera, Programa de Posgraduacao em Ciencias da Religiao Dec 2009
Abstract
As well as in any area of knowledge, the studies made by the Sciences of the Religions were marked by many determinant historical paradigmatic revolutions, which came to aid the rise of the Religion's Phenomenology's method. The goal of this study is to attempt, therefore, not only the presentation of this process of paradigmatic revolution but also to reveal the characterization of the favorable context of its emergence. For all that, we will bring back historical moments and important studious man, methodological overcomes; bestowing in focus Husserl's phenomenological method as a facilitator of the emergence conditions of Otto's sacred phenomenology, who in turn, grants the religious experience originating as a sufficient phenomenon to the description and evaluation of what comes from the relationship between the human being and the sacred. The phenomenological analysis proposed by Rudolf Otto, it overcomes positivist methodologies imprint, broke new ground. By introducing the concepts of Mysterium tremendum et fascinans, the author made it possible for studies in the area of Sciences of Religions, contact, recovery and research experiences purely anthropological as a relationship between the human and sacred. [PUBLICATION ABSTRACT]
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