Resumo
Por mais de 70 anos esteve presente nas paredes de lares de protestantes históricos brasileiros um exemplar da conhecida gravura "os dois caminhos". Originada na Alemanha, na metade do século XIX, esse quadro foi aperfeiçoado na Holanda e divulgado para o mundo todo a partir da Inglaterra, nas últimas décadas daquele século. Trata-se de uma das produções culturais mais conhecidas do protestantismo daqueles tempos. Esse quadro foi levado para áreas missionárias e usado nas pregações e na catequese, justamente por ser uma síntese da mensagem de um protestantismo pietista e puritano. Essa iconografia transmite uma visão bem definida das fronteiras, indicando limites exatos ao comportamento dos crentes. Hoje esse quadro está fora de circulação. Mas, compreender essa gravura ajuda no conhecimento mais aprofundado do protestantismo que se propagou pelo Brasil nas reg iões rurais e nas pequenas cidades.
Palavras-chave: Iconografias protestantes. Quadro os dois caminhos. O céu e o inferno. História Cultural.
Abstract:
For more than 70 years, it was common to see in Brazilian Protestant Christian homes a picture hanging on the wall: "The Two Ways" picture, originated in Germany in the middle of the 19 th century, further enhanced in the Netherlands, and disseminated from England to the entire world in the late 19th century. Since then, it has been one of the Protestantism's most well known cultural productions. This picture was then brought to missionary fields, used for preaching and indoctrination, since it summarizes the Protestant Puritan message. This iconography is a model and conveys a well-defined vision of boundaries, establishing precise limits for the behavior of Christians. Today the picture is out of circulation. However, understanding the "two way" picture helps us deepen our knowledge about the Protestantism that spread throughout Brazil's rural areas and small cities.
Key words: Protestant iconographies. Two ways picture. Heaven and hell. Cultural History.
Introdução
Este texto analisa uma gravura que surgiu entre protestantes pietistas alemães, há 150 anos, inspirada nos dizeres finais do "Sermão do Monte", atribuído a Jesus, conforme Mateus, 7.13-14, reproduzido acima de acordo com a versão da Bíblia traduzida e impressa na grafia da época da divulgação da gravura no Brasil. Essa iconografia, conhecida como "o quadro dos dois caminhos", foi desenhada na Alemanha, em 1862, na cidade de Stuttgart, a pedido de uma senhora chamada Charlotte Reihlen (1805-1868) que foi uma das mais ativas participantes do "movimento de diaconisas" no interior do luteranismo alemão de tendência pietista. Reihlen esboçou a gravura, encaminhando-a a um artista gráfico, Paul Beckmann, que a pintou.
Da Alemanha a gravura, agora na forma de uma litografia, foi levada para a Holanda, onde em 1867 foram impressos 10 mil exemplares. Mas, a versão divulgada nas áreas missionárias alguns anos depois, foi traduzida para o inglês e impressa em Londres, em 1883, sob o estímulo de Garwin KIRKHAM (1888) autor de The Broad and the Narrow Way: The story of a Picture.2 Estamos, portanto, diante de uma iconografia que fez sucesso durante décadas, em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, recebendo o nome de seu conteúdo: "O caminho largo e o estreito"; "O caminho da salvação e da perdição"; ou simplesmente, "O quadro dos dois caminhos".3
O interesse do autor deste artigo por essa iconografia vem desde os anos 1950, quando ainda criança a viu, pela primeira vez, exposta na parede da casa de um de seus antepassados.4 Já a sua escolha como objeto de investigação se deu por vários motivos. Primeiro por causa da iconoclastia que tornou a criação e circulação de imagens e gravuras nos meios protestantes casos raros.5 Outra razão da escolha foi a suspeita de que essa gravura é um verdadeiro mapa, uma espécie de janela aberta para o interior do imaginário e da cosmovisão do protestantismo pietista e puritano, implantado no Brasil a partir da metade do século XIX.
Entre os autores que inspiraram a sua atenção para o estudo destas e de outras iconografias protestantes estão os nomes de David MORGAN (1992, 1998, 2001, 2005, 2008,2014), Gillian ROSE (2007), E. H. GOMBRICH (1999), Lucia SANTAELLA e W. NOTH (1998), Alain BESANÇON (1997).6 No que se refere especificamente à gravura "Os dois caminhos" fazemos referências as contribuições de Gawin KIRKHAM (1888), Birgit MEYER (1999), Duglas Teixeira MONTEIRO (1975), Rubem ALVES (1979) e Lyndon de Araujo SANTOS (2006).
Nas leituras sobre iconografias religiosas encontramos uma frase de MORGAN (2005:p.XV) que considera ter "uma imagem religiosa popular" a capacidade de contribuir "para a construção da realidade", que é criada socialmente e usada pelas pessoas na construção e manutenção de seus mundos. A partir dessa observação perguntamos: o que levou o protestantismo pietista e puritano, que sempre privilegiou a palavra em seus processos de comunicação, a se expressarem por imagens? Que implicações teológicas há por detrás dessa relação entre protestantismo e imagem? Jerônome COTTIN (1994, p.7) tomou como ponto de partida de seu texto Le regard et la Parole: Une théologie protestante de l'image a pergunta "o que significa ser uma Igreja da Palavra em uma civilização da imagem?"
Nas reflexões a seguir tentamos responder a estas e a outras perguntas: De que forma a cultura visual protestante interage com culturas e representações religiosas do hemisfério norte, em especial a católico-latina? Que mentalidade se esconde por detrás das iconografias protestantes? Que Teologia ancora o significado e as representações de mundo na gravura "Os dois caminhos"? Que tipo de produção cultural gerou o protestantismo reformado, a despeito de sua iconoclastia e de sua resistência à representação imagética do mundo transcendental? O que dizer da circulação entre eles de iconografias como a "arca de Noé"; "Jesus, o bom pastor"; "Livrinho do coração";7 "Jesus batendo à porta"; ou, em especial, a gravura "Os dois caminhos"?
"Os dois caminhos" tem sido objeto de análise no Brasil, até onde sabemos, a partir da primeira metade dos anos 1970. As reflexões iniciais foram feitas por MONTEIRO (1975)8 e, depois, por ALVES (1979). Ambos tinham por interesse explicar a forma usada por protestantes conservadores na construção de suas respectivas visões de mundo.9 Posteriormente apresentamos uma versão inicial destas observações em congressos científicos (CAMPOS, 2000).
Também conhecemos as abordagens de PINESI (2003), que estudou essa gravura à luz de reinterpretações propostas pelo neopentecostalismo, e de SANTOS (2006) que apresentou a sua análise dentro das relações estabelecidas entre protestantismo e cultura brasileira do período da "República Velha" (1889-1930). Todavia, foi somente após os estudos de Santos (2006) que se descobriu um texto do século XIX, escrito pelo pregador inglês Gawin Kirkham (1833-1892), que conta a história das origens e circulação dessa gravura desde a Alemanha, Holanda, e Inglaterra.10
Para responder algumas das indagações aqui registradas apresentamos a seguinte estrutura: Na primeira parte há algumas observações de caráter metodológico sobre iconografias, o sagrado e visões de mundo. Na segunda parte reunimos observações sobre a origem, trajetória e influências perceptíveis na gravura "Os dois caminhos". Nela fizemos uma tentativa de traçar a sua trajetória, buscando-se compreender o contexto que cercou e ainda cerca seus produtores e receptores, enfatizando-se alguns elementos que facilitaram o seu transplante com sucesso de um para outro contexto cultural. Na terceira e última parte há uma descrição, análise e interpretação da gravura, na qual a dividimos em pequenas partes, com o objetivo de recuperar a grande narrativa que lhe garantia a significação.
A gravura (Figura 1) foi divulgada no Brasil na primeira metade do século XX. O exemplar usado neste estudo foi publicado pela Casa Editora Presbiteriana (versão sob domínio público, seguindo o modelo da edição inglesa de 1883). Nos primeiros exemplares distribuídos no Brasil constavam como responsável pela edição impressa em Portugal o reverendo Ricardo Mayorga, um ex-padre católico que se converteu ao protestantismo no início daquele século.
1 As iconografias, o sagrado e as visões de mundo
Para uma reflexão sobre as condições em que se dão a produção e divulgação de um artefato cultural é interessante responder a algumas questões tais como: Qual é o Sitz im Leben11 da produção e da recepção de uma gravura? Que condições sociais e culturais envolveram as pessoas, além das que produziram, se identificaram, compraram ou usaram essa gravura como expressão de suas respectivas escolhas religiosas? De que maneira o protestantismo expressou iconograficamente suas crenças? Que novas e mutantes situações histórico- culturais provocaram reapropriações e releituras dessa gravura em lugares e momentos históricos tão diferentes?
Sobre a variedade de culturas e lugares aonde chegou a gravura aqui analisada remetemos o leitor ao texto de Birgit MEYER (1999),12 que embora trate mais da tradução, reprodução ou ressignificação do Diabo em campos missionários africanos, dedicou dezenas de páginas na análise das relações entre pietismo, linguagem das imagens e metáforas contidas na iconografia que originalmente, em alemão, recebeu o nome de Der breite und der schmale Weg. Daí uma pergunta que podemos fazer a respeito de sua recepção em contextos culturais tão diversos: Que similaridades, categorias universalizantes, ou traços culturais locais facilitaram o sucesso e a boa receptividade da gravura em zonas rurais e urbanas da América Latina, Europa e África segundo Meyer?
A partir dessa questão surgem outras perguntas que estimularam esta investigação sobre a produção, circulação e percepção de iconografias religiosas entre protestantes brasileiros. Nesta análise acadêmica pressupomos que essa gravura possibilita a compreensão das forças que emergem do interior do imaginário protestante, e que se expressam em suas produções culturais.13 Daí mais algumas perguntas: O que permaneceu e o que mudou nessa representação gráfica ao longo de uma história com um século e meio de duração? Há indicações de que tais transformações expressam materialmente o ocorrido na mentalidade, no imaginário e nas instituições típicas do campo protestante.
Ainda podemos perguntar: Não é curioso que os reformados de tradição calvinista, principalmente, que sempre privilegiaram a força da palavra escrita, a oralidade, a iconoclastia, condenando a produção visual imagética medieval e católica, tenham incorporado elementos não-discursivas, incluindo iconografias e gravuras em suas práticas proselitistas? Que novidade o estudo dessa gravura, surgida apenas em 1862 na forma aqui apresentada, nos traz para uma melhor compreensão das mudanças da forma protestante de produzir e fazer circular seus artefatos culturais-religiosos? Que reflexos as mudanças culturais produziram na elaboração e circulação de produtos culturais, assim como nos campos da produção, percepção e consumo de obras de arte religiosas, entre cristãos brasileiros, no decorrer do século XX?
Deve-se ainda observar que no protestantismo, diferente das funções das imagens, gravuras, impulsos sensitivos e estéticos no contexto do culto e da pedagogia católico-romana, "Os dois caminhos" têm uma função pedagógica.14 Nesse sentido, o objetivo da gravura além de catequizar e converter pessoas tem a função de fixar a mensagem religiosa na mente do neoconvertido, de servir de "mapa cognitivo" àqueles que acabaram de passar por um processo de alternação ou de conversão. Prevalece na gravura o uso de imagens humanas, e a única referência a Deus é representada por um triângulo com um olho dentro. Há versões da gravura que a cruz, logo na entrada do caminho estreito, está vazia, sem o Cristo morto. Mesmo assim, essa gravura oferece uma visão conjunta, racional e lógica do mundo, gerando no neoconvertido uma nova forma de construir e de conhecer a realidade. Por isso ALVES (1979, p. 131 ss) vê nela um mapa a ser usado pelo peregrino na escolha do melhor caminho para o futuro de sua alma, permitindo o analista espiar o que há dentro da alma protestante e especular sobre suas formas de conhecer o mundo.
Ora, a mensagem do protestantismo histórico depende, em grande parte, da manutenção do pressuposto das penas eternas.15 A ideia de uma salvação universal a ser ofertada para todos os seres humanos no final dos tempos por um "Deus amoroso", torna inoperante a lógica da gravura "Os dois caminhos". Para os protestantes mais conservadores, os conceitos dualistas de salvação e perdição; caminho de vida e de morte; céu e inferno; são conceitos pares, opostos, porém, interdependentes, fundados numa afirmação que seria do próprio Jesus de Nazaré a referência alegórica a dois caminhos possíveis para o ser humano em sua peregrinação neste mundo em direção à eternidade: o "caminho da salvação" e o "caminho da perdição".16
2 Origem e trajetória da gravura "Os Dois Caminhos"
As investigações sobre o quadro "Os dois caminhos" no Brasil, estão, portanto, ligadas as pesquisas e ao artigo germinal de Duglas Teixeira Monteiro (1926-1978). Em seu texto MONTEIRO (1975, p.21-29) registrou os primeiros resultados de investigações com seus alunos de Sociologia, da Universidade de São Paulo. Não temos notícias se essa pesquisa chegou ao fim, pois, três anos depois da publicação do artigo, Monteiro faleceu.
Na época inicial das pesquisas de Monteiro ainda eram desconhecidas as informações sobre as origens históricas e os significados atribuídos à gravura por Kirkham (1888). No entanto, a falta de mais informações levou Monteiro a se enganar quanto às "origens londrinas" da gravura. Ele, porém percebeu, e acabou deduzindo a existência de marcas alemãs e pietistas ao ressaltar a presença na gravura da "Casa das Diaconisas", expressão inscrita na frente de um dos prédios situados à margem do caminho estreito. Ele também não fez referência alguma à passagem da gravura pela Holanda calvinista antes de chegar à Inglaterra. Porém, o seu apurado faro de investigador, apontou corretamente em direção as origens alemãs e pietistas da gravura.
2.1 Origens germânicas, pietistas e proselitista da gravura "Os dois caminhos"
A questão das origens históricas da gravura aqui estudada está hoje solucionada, graças a Kirkham (1888). Segundo ele, a elaboração de um primeiro esboço dessa gravura se deu na Alemanha, por volta de 1862, a pedido da Sra. Reihlen. Algumas modificações ocorreram quando de sua passagem pela Holanda, e mais tarde, pela Inglaterra. A sua formatação final, tal como reproduzimos na Figura 1, se deu em Londres cerca de 20 anos após a primeira edição litografada na Alemanha. Da Inglaterra a gravura foi levada para terras de missões na África, Ásia e América Latina por missionários de motivação pietista.17
A história registrada por Kirkham está bem fundamentada. Ele colheu depoimentos de um casal de filhos de Charlotte Reihlan que teria recebido um projeto das mãos de G. W. Hoffmann, em 1862, um homem que compartilhava com a Sra. Reihlan da visão religiosa resultante de um movimento de avivamento espiritual da piedade pietista, do final do século XVIII e início do XIX que eclodiu em várias partes da Alemanha, inclusive na cidade onde eles viviam. Esse desenho teria sido descoberto por Hoffmann cerca de 70 anos antes entre alguns papéis velhos. Reihlen teria ficado impressionada com o achado e levou um esboço da gravura a um "piedoso desenhista" de Stuttgart.
A seguir, uma editora ligada ao movimento pietista publicou a primeira versão em alemão, em preto e branco, edição acompanhada de uma minuciosa explanação escrita pela própria Sra. Reihlen com a ajuda de um de seus filhos, quando item por item da gravura foi recebendo explicações e referências bíblicas. Há no quadro, na versão em português, 86 citações bíblicas, o que coloca a gravura na fronteira entre o discurso escrito e o visual.
Mesmo assim, os relatos não conseguem comprovar que a originalidade da ideia foi de Reihlen. Tivemos a nossa desconfiança ativada ao localizarmos uma gravura, na forma de um círculo com o título The way of good & evil, desenhada na Pennsylvânia, em 1862, por John Haileer.18 No site da internet em que a gravura está exposta pode-se ler a seguinte explicação: "A imagem é circular e mostra os caminhos divergentes do bem e do mal. Um caminho sai da 'Casa de Deus' e conduz a vida eterna. O outro leva à 'Casa do Pecado', onde há punição e eterna destruição".19
Teriam Haileer e Reihlen se baseado um no outro? Essa hipótese parece improvável até por causa da distância e dificuldades de comunicação então existentes. Mas, nada impede de se pensar na hipótese de que ambos teriam se baseado em um mesmo modelo que os precedeu; ou então, que ambos habitavam um mesmo universo simbólico. Todavia, somente a versão de Stuttgart foi a mais elaborada e a que recebeu explicações tiradas da Bíblia; enfim essa versão foi composta com intenções missiológicas. A diferença entre ambas as gravuras estaria muito mais na visão reavivada com valores pietistas de mundo de Reihlen e não na preocupação com as marcas de uma ética puritano-capitalista de Haileer, que privilegiava a ascese pelo trabalho, igreja e escola.20
De qualquer forma, a gravura alemã e a norte-americano tem muito a ver com as qualidades e defeitos elencados como parte da "ética protestante" e o "espírito do capitalismo" de Max Weber (2003). Por isso, não é mero acaso que um autor puritano muito citado por Weber, Richard Baxter tivesse exercido influência sobre John Bunyan, autor de cabeceira da Sra. Reihlen.21
2.2 Caminhos e trajetórias da gravura "Os dois caminhos"
A gravura aqui estudada, antes de entrar em circulação no "mercado [mundial] de bens simbólicos", passou da Alemanha para Holanda e desta para a Inglaterra. A viagem em direção ao sucesso começou em 1867, quando um pastor de Stuttgart levou um exemplar da litografia para Amsterdã. Com mais algumas alterações, uma primeira impressão de 10 mil exemplares a colocou em circulação na Holanda.
Alguns anos mais tarde, conforme Kirkham, o material foi traduzido para o inglês por uma diaconisa chamada Marriot, e em 1883, a casa Morgan & Scott de Londres publicou uma primeira edição, ainda em preto e branco, medindo 48,2 x 60,9 cm. Logo em seguida veio uma segunda edição, com 50 mil exemplares em cores. Na última página do livrinho de Kirkham há uma propaganda da Morgan, anunciando exemplares de The broad and the narrow way pelo preço de um shilling por gravura.22
Nessa trajetória a gravura passou por várias decodificações e recodificações. A primeira delas, depois da Alemanha, se deu na Holanda, onde uma cultura reformada e calvinista havia se tornada hegemônica desde o século XVII. No entanto, conforme o historiador Simon SHAMA (1993), a riqueza oriunda das aventuras marítimas estava tão concentrada e havia criado uma enorme separação entre ricos e pobres, que as certezas da religião reformada23 não conseguiam resolver o "desconforto da riqueza" decorrente do processo de acumulação capitalista.
Havia na Holanda, naquele momento, grande apreciação dos ricos por pinturas e gravuras, enquanto os pobres se contentavam com xilogravuras. Shama (1993, p.21-22) notou que os holandeses levaram seus dilemas culturais e suas inseguranças para as produções artísticas e iconográficas, que se tornaram "documentos de suas convicções", e as imagens ilustravam textos que apresentavam seus "princípios morais e coisas práticas, o duradouro e o efêmero, o concreto e o imaginário". A gravura foi então rapidamente incorporada a um contexto em que, há três séculos, livros, pinturas, litografias, iconografias e desenhos faziam sucesso, e se tornaram parte integrante da cultura popular holandesa.
2.3 As marcas pietistas e puritanas na gravura "Os dois caminhos"
A gravura "Os dois caminhos" traz as marcas pietistas da região em que a Sra. Reihlen vivia e das ações por ela empreendidas junto a "Casa das Diaconisas", uma instituição criada por mulheres leigas luteranas, sob a inspiração do movimento pietista. O movimento pietista, surgido na região de Halles, sul da Alemanha, floresceu no século XVIII, como uma resposta ao esfriamento da fé protestante entre os luteranos. Da Alemanha o pietismo se espalhou para a Inglaterra e suas Colônias na América, por meio da primeira onda de avivamento espiritual.
O pietismo, segundo a Encyclopédie du Protestantisme (GISEL,1995), adotou como ponto central de suas crenças a experiência subjetiva vivida pelos indivíduos, que uma vez convertidos deveriam formar pequenas comunidades para o exercício da fé. Assim, esse movimento, ao incentivar as experiências subjetivas, se tornava um forte estímulo para que as pessoas buscassem experiências religiosas fora dos quadros sociais. Segundo Louis Dumont (1993, p.45) é em momentos de crise social que aumentam as condições sociológicas e culturais que possibilitam a "emancipação do indivíduo por uma transcendência pessoal, e a união de indivíduos-fora-do-mundo numa comunidade que caminha na terra, mas tem o seu coração no céu." Tais representações se tornam dominantes em certas camadas sociais levando-as ao martírio em nome de Deus.24
Paul Tillich, teólogo alemão-americano, (1988, p.257 e 259) considera o pietismo uma "reação do lado subjetivo da religião contra o lado objetivo". Para ele, foi no campo da ética que a ala mais radical do pietismo expressou a sua condenação aos "bailes, vestidos bonitos, banquetes, conversações superficiais da vida cotidiana". Os pietistas e os puritanos ingleses recomendavam uma atitude de busca da santidade de vida. Para isso era preciso abandonar o mundo e seus afazeres cotidianos. Essa mensagem está contida na literatura de John Bunyan (2006a, 2006b). O personagem central de O peregrino se chama "Cristão", um homem que abandonou o mundo cotidiano, pois, segundo ele, o mundo estava prestes a ser destruído. "Cristão" deixou a sua família e saiu em disparada em direção a cidade celestial tal como é idealizada no livro do Apocalipse. Há, porém, nesse livro uma mensagem que se expressa na contradição entre a inserção do "monge no mundo" e o impulso de "escape do mundo". Uma saída típica dos movimentos apocalípticos que situam a experiência do fiel entre o "aqui e agora" e o "mundo que virá".
O que teria tornado o tema da fuga do mundo, trabalhado por Bunyan, atraente a Sra. Reihlen e aos pietistas de um modo geral? Segundo Meyer (1999) na região de Stuttgart persistia na metade do século XIX uma desconfiança dos que ainda tinham uma mentalidade rural diante do crescimento da vida urbana e das inovações que afetavam as atividades, visão de mundo e conjunto de representações coletivas de vinhateiros e pequenos agricultores. Meyer (1999) informa ter essa mesma região se tornado uma espécie de "viveiro de vocações" para o trabalho missionário, pois, dali, centenas de missionários pietistas saíram para o trabalho missionário na África e outras partes do mundo. Assim, não por mero acaso, muitos desses missionários ajudaram a divulgar em diferentes culturas "Os dois caminhos".
De semelhante modo, na Inglaterra vitoriana havia entre as pessoas pertencentes ao "mundo rural", uma forte desconfiança e um sentimento de recusa ao mundo urbano e industrial, visto por elas como o cenário gerador de violência, depravação moral, consumo de bebida alcoólica, e de outros tipos de condutas catalogadas como "pecaminosas" pelos pietistas e colocadas no caminho largo. Muitos reagiam com uma visão de nostalgia por um mundo rural, marcado pelo verde, com fontes de águas cristalinas, ar puro das montanhas. Esses sentimentos podem muito bem ter havido projeções ideológicas na gravura, colocando no lado do caminho para o céu, por parte de habitantes de Londres e de Manchester, cansados de uma Inglaterra onde muitas pessoas haviam perdido parte do sentido da vida tradicional com a revolução industrial iniciada um século antes. Daí o sucesso de renascimentos espirituais e de movimentos de tipo metodista iniciado pelos irmãos Wesley no século XVIII. Nesse sentido é boa a sugestão dada por Sigsworth (1988) de que houve na releitura inglesa da iconografia alemã-holandesa uma significativa influência dos valores vitorianos da Inglaterra da segunda metade do século XIX e dos reavivamentos religiosos iniciado no século anterior.
Mas, o atraente nessa história não é tanto o vigoroso movimento missionário atrelado ao processo de colonialismo que conseguiu impor o gosto pela gravura "Os dois caminhos" e sim as condições culturais que provocaram a sua aceitação por pessoas pertencentes a culturas tão diferentes. É possível que tanto no contexto de sua produção como no da percepção houve um olhar que se constituiu a partir de um contexto social semelhante, o que facilitou a sua percepção em contextos culturais diferenciados.
É possível também que a popularidade dessa gravura, em países e culturas tão diferentes, desde que se tornou um objeto reproduzido industrialmente no final do século XIX, indique a sua utilidade para o trabalho de catequese promovido pelos missionários. Pode-se também acrescentar que a facilidade de se decifrar os códigos usados para sua confecção, entre eles a linguagem e crenças usadas para se referir à vida pós-morte, o castigo dos ímpios, tenham ajustado os consumidores dessa gravura a adotarem uma teodicéia apropriada a modernidade capitalista e industrial, no sentido weberiano, tal como foi comentado por Berger (1985).
Essa temática atraiu pessoas ávidas por novos produtos simbólicos que oferecessem sentido a trajetórias de vidas inseridas em uma realidade cotidiana caótica. Houve, nesse caso, o que à luz de Bourdieu (1982) podemos chamar de sincronização entre os campos de produção simbólica erudita e uma indústria cultural voltada ao atendimento de uma demanda popular. Nos Estados Unidos foi somente por volta da metade do século XIX é que surgiu uma cultura de massas que segundo David Morgan (2014, p.239) provocou o casamento entre oferta e demanda, num sistema de troca em que "as condições econômicas e tecnológicas de produção" se integraram as "condições sociais e culturais que criam e mantém a necessidade para tal produção". A Holanda e Inglaterra antecedeu os EUA nesse processo de formação de um mercado onde se produziam bens simbólicos ligados a fé protestante.
O movimento puritano surgiu na Inglaterra do século XVI oferecendo uma visão de mundo alternativa ao anglicanismo, considerado um "protestantismo impuro" por suas ligações com o catolicismo e com o Estado. Foi um ambiente propício a codificação de uma mensagem protestante facilmente absorvida em contextos de estabelecimento de novas modalidades culturais, em novos territórios. Naquele contexto de conflito entre a realeza, defensora do anglicanismo, e os puritanos liderados por Oliver Cromwell (1599-1658), atingiu seu ponto alto do que foi uma guerra civil (1642-1651) em que a coligação dos vencedores foi liderada pelos puritanos, porém dentro de um cenário de luta entre visões opostas de mundo.
A teologia dos puritanos se objetivou na forma de arte num livro publicado após a morte de Cromwell, O peregrino (1678) de John Bunyan (1628-1688).25 O peregrino era um dos dois livros preferidos de Heihlen. Nesse sentido, foi grande a influência intelectual e espiritual do autor de O peregrino na concepção, produção e circulação da gravura "Os dois caminhos". A ligação entre a gravura "Os dois caminhos" e a ficção de Bunyan é perceptível, não somente por causa da citação de versículos bíblicos para ilustrar situações, mas também nos tipos criados e na concepção da carreira cristã vista como uma peregrinação oposta ao envolvimento social. Em ambos os casos, o ascetismo foi marcado pela fuga e negação da sociedade, que é encarada como um espaço habitado por pessoas frívolas que levam uma vida voltada apenas às "diversões mundanas" e aos "prazeres carnais".
Por sua vez, os salvos são os que desconfiam das riquezas, evitam os prazeres da bebida, do sexo, do jogo de azar, do exercício do poder e da vida urbana. 26Para eles está reservada uma vida eterna de delícias numa cidade celestial, depois de uma peregrinação por uma região bucólica. No entanto, diferente da gravura "Os dois caminhos", em que a peregrinação se dá em terrenos assimétricos, paralelos e ascendentes, os personagens de Bunyan efetuam a caminhada entre as tentações do caminho largo. Mendonça (2008, p.342) ressalta que no Brasil esse sentimento de peregrinação teria levado o protestante, que se converteu à nova mensagem, a cantar cânticos peregrinos que falam das "glórias e prazeres de sua futura e verdadeira pátria" recusando os valores e os prazeres enganosos do tempo presente. Esse "penoso peregrinar" somente foi compensado no caso dos personagens de Bunyan, no final da trajetória de "Cristão" e de "Cristiana", quando os caminhos se bifurcam e eles chegam sãos e salvos à "Cidade Celestial".
É curioso, porém nunca fora da lógica, que os missionários protestantes ao chegarem ao Brasil na segunda metade do século XIX traduziam do inglês para o português os livros de Bunyan, publicando-os pela primeira vez no jornal A Imprensa Evangélica, primeiro jornal evangélico brasileiro, fundado por Ashbell G. Simonton, em 1864.27 A intenção de publicar Bunyan nos campos missionários talvez se deva ao fato de que a maioria desses missionários vieram do sul dos Estados Unidos, exatamente no período histórico em que o norte vencedor da Guerra da Secessão impunha sobre o Sul a sua hegemonia. Ora, a tradição sulista se expressou simbolicamente num tipo de protestantismo favorável a propagação de uma visão teológica que enfatizava a imigração espiritual em direção a "Jerusalém celestial", isto é, uma ascese para fora da sociedade. Por sua vez, os negros escravos também cantavam a sua liberdade numa linguagem cifrada em que falavam da ida para o céu como o maior anelo da alma, por isso, "transpor o rio Jordão" e adentrar à pátria celestial era a maior expressão do desejo de liberdade desses escravos.
Sobre esse protestantismo Mendonça (2008, p.321 ss) afirma ainda que se trata no caso brasileiro, de um protestantismo "pietista", "peregrino", "guerreiro", "milenarista", que esperava alcançar no fim do "penoso lidar" o "verdadeiro e eterno lar do cristão - o céu. Tais sentimentos pressupunham um fiel que se sentia "estranho na Terra"". Ora, quem peregrina abandona os valores do presente e aceita viver em função de um futuro que ainda não chegou. Daí o título dado por Mendonça (2008, p. 341) ao seu livro sobre a inserção protestante no Brasil do século XIX, O celeste porvir.
Essa visão do empreendimento missionário que se dá em um mundo dividido entre "salvos" e "perdidos", é confirmada pela temática dos hinos que eles ensinaram aos novos presbiterianos, batistas, metodistas e congregacionais brasileiros e outros convertidos. Tais hinos e cânticos enfatizavam a marcha do peregrino, que aborrecendo a vida terrena, esperava pela entrada de sua alma no céu. Hinos e cânticos ainda hoje populares expressam esse anseio.28
Portanto, na gravura "Os dois caminhos" se sedimentam teologias, visões e subculturas protestantes, que circulavam na Europa protestante desde o século XVII interagindo com outras derivações teológicas oriundas dos EUA, e dos movimentos de reavivamento espiritual, mais fortes nos séculos XVIII e XIX.. Nela, visões da espiritualidade evangélicas, oriundas de diferentes origens se cristalizaram e tradições se perpetuaram. Em outras palavras, na versão final encontramos visões diversas do mundo encapsuladas em uma só gravura.
3 Descrição e interpretação da gravura "Os Dois Caminhos"
A Figura 1 aqui analisada é uma reprodução da versão inglesa de 1883, mede 42 cm x 54 cm, e foi distribuída pela Casa Editora Presbiteriana, de São Paulo, num período anterior a Segunda Guerra Mundial. Segundo informações colhidas por Monteiro (1975, p.22) os primeiros exemplares que circularam no Brasil foram impressos em Portugal e distribuídos pelo ex-padre e depois ministro protestante, Ricardo Mayorga.29
Alem dessa versão circularam no País outras versões em que o estilo pictórico foi sendo atualizado e as figuras modernizadas em suas roupas, veículos, arquitetura dos prédios, nomes e lugares de algumas instituições situadas à margem dos caminhos. Muito do que foi mudado o foi porque não mais se harmonizava com o processo de institucionalização do protestantismo brasileiro, com as mudanças tecnológicas, e a recente crise da modernidade.
3.1 O hall de entrada dos caminhos da salvação e perdição
Na área pictórica de onde saem os dois caminhos (Figura 3), há duas portas, uma estreita e outra larga. Nesse espaço visual predomina a oportunidade para a decisão sempre possível de ser feita pelo ser humano;30 as estátuas de Baco/Dionísio e Vênus/Afrodite, que representam dois prazeres "perigosos" para os seres humanos na visão puritana: bebida e sexo. Do lado da porta estreita, que somente cabe uma pessoa sem bagagem, está um homem com uma enorme mochila nas costas, chorando, porque evidentemente quer entrar, mas não gostaria de abandonar seus pertences "mundanos". Um pregador anuncia, ao ar livre, a mensagem de arrependimento, bem dentro da crença arminiana do livre arbítrio, que dá ao homem a possibilidade de escolher entre salvação e perdição. Há uma profusão de avisos indicando o destino que aguarda os peregrinos que tomam este ou aquele caminho. Os peregrinos nesse espaço são 12 pessoas, sem contar três pessoas que se encontram no limiar do portão largo. A porta estreita está aberta e um pregador indica as duas alternativas possíveis: morte ou vida, salvação ou perdição.
3.2 Cenas e atores do caminho estreito
Adotamos no estudo da gravura uma metodologia inspirada em Monteiro (1975), que dividiu o campo pictórico em partes, buscando-se assim o significado para as várias cenas retratadas na imagem. De semelhante modo nós dividimos a gravura em partes e tecemos comentários sobre cada uma delas.
3.2.1 O caminho estreito (trecho inicial)
A segunda área (Figura 4) começa logo após o muro que separa o hall do lugar onde está à esquerda de quem entra o Cristo crucificado.31 A imagem do crucificado domina a cena. A sua cruz está sobre um pequeno elevado de onde brota uma fonte de água. A água é uma poderosa imagem em todas as religiões. Ela representa a purificação, a vida e a energia aquática vinda da divindade. Do outro lado, antes do início de uma escada, está um edifício com as características de uma "Igreja evangélica". Uma peregrina sobe tranquilamente os últimos degraus da escada, tendo às mãos uma criança.
3.2.2 O caminho estreito (trecho intermediário)
Logo na entrada do caminho estreito (Figura 5) há uma instituição famosa entre os protestantes, a Escola Dominical.32 No centro da gravura, do lado do caminho da salvação há, à esquerda para quem olha para a gravura, entre o abismo da perdição e o caminho estreito, uma zona intermediária, onde ainda resta oportunidade de conversão para os que peregrinam pelo caminho da perdição.
Duas pequenas pontes de madeira passam sobre o abismo, indicando serem essas as últimas chances de mudança de rota. É bom lembrar que para o pietismo, especialmente para o de tipo arminiano,33 enquanto houver vida ainda há esperança de alguém se "decidir por Jesus". Por isso, um pregador ao ar livre tenta convencer uma pequena multidão a sair do caminho largo para ouvi-lo.34 Uma tenda de lona está instalada para ajudar os necessitados. Uma pessoa, logo na entrada dessa área, oferece uma jarra de água a um peregrino. Esses edifícios e ações são mais algumas marcas do pietismo: a necessidade de assistir aos pobres e necessitados.
3.2.3 O caminho estreito (parte alta)
A quarta grande área (Figura 6) se situa entre a entrada do céu e o final das construções. Ali o caminho é mais estreito e íngreme. No início há um edifício com a expressão bíblica em aramaico talita cumi usada por Jesus para curar uma criança. O edifício simboliza a preocupação pietista com os doentes, necessitados, prisioneiros, órfãos. O edifício ao lado é uma espécie de capela, seguido por um grande edifício onde se lê "Instituto das Diaconisas". Essa instituição, operada por mulheres luteranas pietistas, era uma espécie de casa de socorro, destinada ao atendimento espiritual e material de necessitados. A responsável pela edição alemã desta gravura ajudou a fundar e trabalhou durante anos numa casa de diaconisas em sua cidade. Quase em frente do "Instituto de Diaconisas" um leão, simbolizando os ataques do Diabo, é enfrentado por um peregrino, armado com a "espada da fé", conforme o texto bíblico referido.
3.2.4 O fim de uma peregrinação feliz - o céu
A área da Figura 7 reflete a simbologia bíblica do livro do Apocalipse, que fala das características da cidade celestial. Essa cidade utópica, a "Nova Jerusalém", é o prêmio a ser oferecido para todos os peregrinos que forem fiéis até o final da vida. Logo na entrada está uma coroa, a qual o texto bíblico diz que está reservada aos vencedores. A cidade celestial, em quase todas as diferentes versões desta gravura reflete o imaginário e as aldeias europeias do período anterior a urbano-industrialização.
No alto de um monte está um cordeiro cercado de anjos, que significa Jesus Cristo, o que recebe no livro bíblico de Apocalipse o título de "cordeiro de Deus" vitorioso em sua luta contra o Diabo, a morte e o mal. Os protestantes, para se falar e cantar o céu usam de várias metáforas. Um desses cânticos, aliás muito popular entre os protestantes tradicionais, traduzido para o português já no início de sua implantação, diz: "Tenho lido da bela cidade,/ situada no reino de Deus,/ com seus muros de jaspe luzente/ juncada de áureos troféus/ no meio da praça está o rio / da vida e vigor eternal, / mas metade da glória celeste/ jamais se contou ao mortal." (SALMOS E HINOS, 1957, n. 477).
3.3 Deus: "o olho que tudo vê"
O olho dentro de um triângulo (Figura 8) espalhando raios de luz faz referência a um texto bíblico (1 Pd 3:12). Deus é apresentado nesse escrito canônico como o olho que observa os justos e injustos. Porém, na gravura em sua versão inglesa, esse olho observa a tudo e a todos, apontando para a onisciência e onipresença de Deus.35 A iconoclastia dos protestantes reformados, na esteira de João Calvino, denuncia toda e qualquer representação do Eterno. Todavia, ela pode ser sugerida pelo triângulo, pois, representar Deus em formato material é interditado no judaísmo, islamismo e alguns setores mais iconoclastas do cristianismo.
Esse triângulo, no entanto, nem sempre foi aceito por unanimidade pelos receptores dessa gravura.36 Há protestantes antimaçons que vêem no triângulo com um olho dentro espargindo luz, um símbolo maçom, presente em objetos, edifícios e até nas notas de dólar norte-americano. Nessas cédulas do dinheiro americano o olho repousa sobre uma pirâmide. Outros extrapolam para os movimentos esotéricos que também lançam mão desse símbolo. Talvez, por causa dessas críticas, alguns produtores de "Os dois caminhos" criaram uma versão que não traz o "olho que tudo vê". Logo abaixo desse símbolo está o arco -íris, representação de um Deus que estabeleceu uma aliança com o ser humano desde os tempos do dilúvio, segundo a tradição judaica, de que a Terra não mais seria destruída pela água.
No imaginário protestante a próxima destruição será pelo fogo. Mas, Deus está aberto a negociações, aceita a conversão e o arrependimento. Porém, isso é possível somente enquanto a pessoa estiver viva. Notemos ainda que o "olho que tudo vê" parece estar também vigiando quem se aproxima da gravura para fazer dela uma leitura descompromissada.37 O grande olho não está acima do céu ou do inferno. Muito pelo contrário, ele está entre os dois caminhos, observando tudo o que acontece e as decisões individuais que são tomadas.
O caminho largo é mais urbanizado, há mais pessoas circulando, diversão para todos os gostos, meios de transporte da época (trem, cavalos e carruagem) e muitas oportunidades para interação social. Das 155 pessoas desenhadas na gravura (excluindo-se os batalhões de soldados em combate), todas são observadas por Deus; 7,7% (12) estavam do lado de fora dos dois caminhos; 67,7% (105) no caminho largo; 14,2% (22) se situavam nos espaços de decisão ou ouviam a mensagem de arrependimento do pregador; somente 10,4% (16) delas estavam no caminho estreito. Daí a referência a uma afirmação de Jesus: "muitos são chamados, mas, poucos os escolhidos".
Os chamados "prazeres da carne": sexo, bebida, jogos de azar, baile, teatro, obviamente; estão todos ao longo do caminho espaçoso, constituindo-se micro- cenas em que as pessoas se reúnem ou se interagem para a ação social. A bandeira que adorna o edifício do salão de baile-taverna é "mundanismo e a carne" e o teatro provoca a profanação do dia sagrado, o domingo. As consequências também ali estão retratadas: violência contra as pessoas, guerra, suicídio, assaltos, assassinatos, ladrão agindo, violência contra os animais. No paisagismo também há reflexo, pois, a vegetação é escassa, ao contrário do verde que se espraia em árvores e gramado do lado do caminho estreito.38 O meio de transporte mais moderno da época, o trem, se encarrega de abastecer, não se sabe se os campos de batalha ou a cidade que está sendo destruída.
3.4 Cenas e atores do caminho largo
O caminho largo é o mais movimentado. Nele há um número maior de atores em movimento. Todos eles estão sob o poder da morte e da destruição e se escondem sob uma falsa felicidade. A violência é uma constante. Os diversos prédios, cenas e atores, indicam uma felicidade que para o pietismo é passageira e falsa. Reina a despreocupação com a eminente destruição.
3.4.1 O caminho largo (trecho inicial)
O portão de entrada do caminho da perdição é largo e, segundo Jesus (Mt. 7.13,14), muitas pessoas entram por ele. Na Figura 9, sobre as duas pilastras do portão estão os conhecidos deuses gregos, Dionísio e Vênus. Ambos, com uma das mãos seguram a mensagem de acolhida à multidão: "bem vindo". Do lado de Dionísio, num bar várias pessoas se confraternizam. No outro lado está a deusa Vênus, onde sob a sua proteção uma prostituta se oferece para um homem que estende a mão para ir ao encontro dela.
Logo a seguir, do mesmo lado, está o edifício do teatro, visto como negativo, também por causa da "profanação do domingo", e pelo erotismo que desperta entre homens e mulheres na porta de entrada. Em frente ao teatro está um salão de baile. No andar de cima alguém expõe uma bandeira: "o mundo e a carne". Na fachada do prédio a indicação retoma a associação entre a bebida alcoólica e a religião: "Taberna e mundanismo". No espaço entre os dois prédios há cenas de violência contra animais, ladrões atacando transeuntes, casal namorando ao lado de um chafariz.
Na última construção do lado esquerdo do caminho largo está o cassino. Cabe relembrar que para o puritanismo e pietismo, os jogos de azar, ao lado do alcoolismo e da prostituição, eram os grandes problemas urbanos nos tempos da formação das cidades modernas que se industrializavam. As virtudes apreciadas, que formavam "a ética protestante", eram justamente as que mais se adaptavam ao "espírito do capitalismo".
No andar térreo do cassino há uma casa de penhores, na janela está pendurado o corpo de uma pessoa enforcada, e na outra um ladrão sobe por uma escada de madeira ao andar superior. No lado contrário do cassino há uma banca onde se vendem bilhetes de loteria, enquanto transeuntes passeiam despreocupadamente.
No mundo puritano, pietista e capitalista, o trabalho e a disciplina para a produção eram itens bem quistos pela ideologia dominante. Atrás da banca onde se vende bilhetes de loteria há um grupo de pessoas que está ouvindo um pregador, os quais supostamente os alertam para o risco eminente de destruição de suas almas.
3.4.2 O caminho largo (penúltimo trecho)
Na área destacada pela Figura 10, a violência e a destruição se dão por meio de batalhas campais entre soldados adversários. Os trechos bíblicos evocados falam em batalhas, em cadáveres apodrecendo ao relento. Observa-se aqui a alegoria do trem, que é colocado do lado do inferno. Monteiro (1975, p.23) registrou observação de um entrevistado que assinalou o papel dessacralizador da viagem de trem sobre os ingleses da segunda metade do século XIX. Naquela época as primeiras linhas desse meio de transporte entraram em funcionamento. O trem foi o meio de transporte inicialmente considerado o responsável pela debandada de pessoas dos cultos dominicais, estimulando a "profanação do domingo". O trem teria trazido para pessoas, que até então viviam confinadas em suas aldeias, a possibilidade de visitar amigos e parentes que viviam distantes, ou então de se deslocarem para o campo a passeio justamente no dia sagrado que deveria ser dedicado ao ir à Igreja, ler e meditar sobre as coisas sagradas - o domingo, "dia do Senhor". Assim os exercícios dominicais eram substituídos pelo lazer.
3.4.3 Final de uma peregrinação infeliz - inferno
A Figura 11 faz referência ao lugar de destruição, tormento e castigo eterno dos que optaram por uma vida fácil ao longo da peregrinação no caminho largo. No centro está o fogo que devora e destrói a cidade do homem que arde em chamas, enquanto a cidade de Deus exala o seu esplendor. Abaixo exércitos em batalha apontam para o uso de tecnologia para a matança. Enquanto isso o trenzinho transporta pessoas para alimentar o fogo do inferno.
Considerações Finais
No decorrer deste texto pudemos notar que a uma visão teológica e antropológica dualista opõe a comunidade "dos salvos" ao conjunto maior da sociedade formado pelos "perdidos". Todavia, essa cosmovisão se torna cada vez mais difícil de manter dentro de um contexto dominado por uma cultura pluralista e pós-moderna. Peter BERGER e Thomas LUCKMANN (1997, p.61ss) ressaltam que a modernidade trouxe com ela uma crise de sentido em que "os sistemas de valores e as reservas de sentido deixaram de ser patrimônio comum de todos os membros da sociedade. O indivíduo cresce em um mundo em que não existem valores comuns que determinam a ação nas distintas esferas da vida (...)."
Por sua vez, as instituições que possuíam o depósito histórico das receitas de como agir para obter este ou aquele resultado, também entraram em colapso. O templo evangélico, a Escola Dominical, a Casa de Diaconisas, e outras instituições citadas em nossa gravura à margem do "caminho estreito" nada mais podem fazer para manter uma visão monopólica que ancore uma determinada visão religiosa.
Há também outra questão. A gravura "Os dois caminhos" estigmatiza a vida urbana e privilegia a cor verde e a vida rural. Encontra-se então instalado nas entrelinhas uma denúncia das limitações da vida urbana e industrial, que estão relacionadas com a modernidade. Nesse ambiente bucólico, o caminho estreito é como se fosse uma trilha, que apesar da subida (ascese) é uma viagem pelo campo ou por um jardim. A própria cidade celestial é um misto de cidade e de acampamento. Seria sintoma que os receptores dessa mensagem, assim como seus produtores, sempre se deram melhor na zona rural do que na urbana? Talvez, por esse motivo, o lugar da destruição, o inferno, é apenas um prolongamento da vida urbana, enquanto a salvação se dá numa cidade na qual há um misto de vida campesina e urbana, que tem no centro um cordeiro (Agnus Dei) entronizado.
Numa perspectiva fenomenológica a gravura "Os dois caminhos" oferece ao receptor um "estilo cognitivo", um mapa de orientação para a vida terrena. Dentro de seus limites brotam as "evidências" de que a vida está realmente dividida entre dois caminhos opostos: o do bem e do mal. Esse é o "horizonte", o "mundo da vida", em cujas fronteiras o significado e as interações ocorrem, fazendo acumular um "estoque de conhecimentos" que passam a funcionar como um receituário de fórmulas que deram certo no passado. BELLO (1998) propõe que se aplique ao estudo das camadas culturais, e das cosmovisões escondidas por detrás dos artefatos culturais comparados, uma operação arqueológica de caráter fenomenológico, removendo-se as camadas para encontrar a essência do significado original do objeto.
É a partir desse núcleo de experiências que surgem as "zonas de relevância", em cujos espaços se agrupam fragmentos da experiência coletada pelos atores em outros momentos. Nesses espaços topográficos, os projetos de vida se aninham e as condutas adquirem sentido e coerência. Porém, quando os domínios da salvação e da perdição estão separados, não há mais interligação entre os caminhos, desaparecendo assim qualquer possibilidade de manutenção da liberdade dos atores de retornar. A escolha se torna irreversível, pois, na visão protestante, o caminho para o céu ou para o inferno não oferece outra opção tal como a terceira via da visão católica, o purgatório.
Há mais um elemento a destacar na análise da gravura "Os dois caminhos", cuja centralidade mereceu atenção dos teóricos da pós-modernidade, David HARVEY (1998), entre eles. Trata-se da questão da compressão do tempo e do espaço e da maneira como eles são percebidos em várias culturas e espaços sociais diferentes. Entre as pessoas que peregrinam pelo caminho largo o tempo é usado como passatempo, em que a vida flui sem quaisquer preocupações com o fim. É formado esse tempo por momentos de prazer em que os riscos da vida fútil são desprezados ou não fazem parte do cálculo. Os dois caminhos, no entanto, são trilhas de vida diferentes, calcadas em valores antagônicos. Dicotomicamente em um prevalece a ilusão, no outro, a realidade; a morte, em oposição a vida; a perdição, ao invés da salvação; o luxo, em vez da frugalidade; a guerra e não a paz.
A interação e a possibilidade de trânsito entre os dois caminhos somente é possível no início da peregrinação. Há "restrições de contato", para se usar uma expressão adotada por HARVEY (1998, p.195) que torna os espaços e fronteiras cada vez mais difíceis de serem cruzados. A onisciência do "olho divino" paira sobre tudo e todos. Assim as fronteiras se tornam um abismo intransponível.
Os espaços iniciais dos "dois caminhos" são marcados por algo muito moderno: a possibilidade da conversão, quando um indivíduo toma uma decisão de seguir uma religião diferente da tradição familiar. Essa conquista da modernidade estimula o rompimento das narrativas hegemônicas ou únicas. Somente o mundo ocidental, após o Renascimento e a Reforma iria, de uma forma crescente, privilegiar a decisão do peregrino de optar pelo caminho da salvação, enquanto os outros, movidos atavicamente, se deixam levar, encontrando-se no final de um caminho que parecia ser de vida, na verdade um caminho de morte. Na pós- modernidade esses limites, fronteiras, e identidades religiosas, tendem a se dissolver. As delimitações que pareciam tão sólidas "se desmancham no ar".
Nas últimas décadas do século XX não mais pudemos localizar facilmente a gravura "Os dois caminhos" nas livrarias evangélicas ou nas paredes de lares evangélicos onde ela esteve por mais de meio século. Que mudanças culturais, ideológicas e teológicas estimularam esse desaparecimento? Tal sumiço teria sido provocado pelas transformações que afetaram o imaginário, os meios de comunicação, assim como a própria estrutura do campo religioso? Que relação pode haver entre esse desaparecimento e a ruptura nos processos de transmissão da memória religiosa? É possível incluir aqui as intensas mudanças ocorridas na forma de comunicação sob o impacto da alta modernidade ou da pós- modernidade?
Possivelmente entre os vários motivos estejam as transformações que o relativismo produz na medida em que vai corroendo pelas bordas todas as grandes narrativas que embalaram a expressão de fé das gerações anteriores. Avançam também outras teodicéias, para as quais a vida terrena não é uma estação de sofrimento, peregrinação ou de ascese em direção á nenhum paraíso. Há uma despreocupação com a vida pós-morte, com as penas eternas, juízo final, arrebatamento dos fiéis, ou segunda vinda de Jesus ao mundo. Esses e outros temas escatológicos perdem sua importância diante de objetivos arraigados na vida aqui e agora e nas delícias da sociedade de consumo.
O cenário religioso mudou muito também desde os anos 1860 e desde quando a gravura "Os dois caminhos" foi introduzida no Brasil. No início do século XX ainda predominava a polêmica com o catolicismo. O protestantismo era então uma religião minoritária, considerada uma seita cristã não-católica. A identidade protestante era construída como uma negação do catolicismo. Ser protestante era ser alguém que não fumava, não tomava bebida alcoólica, não dançava, não jogava e nem praticava outros " deslizes" morais. A prática dessas coisas era vista como própria de "católicos romanos".
Pode-se também pensar que o surgimento de uma cultura hedonista, em que o prazer antes tabuado pela religião vai sendo incorporado à visão de mundo cristã, está criando um tipo de cristãos mais light, menos submetido às regras de condutas ditadas pelos pastores e clérigos. Nesse sentido, a liberação do sexo, dos diversos tipos de jogos, o aparecimento de uma menor tensão entre os códigos secularizados de controle da vida individual e a moralidade cristã dicotômica; há um enraizamento maior da vida cotidiana nos limites da sociedade de consumo; tudo isso tornou mais porosa as fronteiras entre um ascetismo condutor do indivíduo para o céu e um tipo de vida fundamentado no prazer do viver despreocupadamente. O que significa nesse contexto manter um script de como se comportar para obter a salvação por meio da prática da santidade na vida cotidiana num contexto de uma "modernidade líquida" (BAUMAN, 2001)?
Uma das consequências dessa liquidificação de algo que parecia tão sólido é o derretimento de territórios e de caminhos até então considerados lugares de solidez como uma rocha sobre a qual uma casa era construída. Naqueles tempos era muito mais fácil se entregar a ilusão de que os territórios e fronteiras onde pisávamos eram seguros e impenetráveis. SANTAELLA (2011, p.18) afirma que "quando a aceleração do mundo industrializado não havia ainda tomado conta da existência humana, era mais fácil acreditar na estabilidade de nossos limites corporais e na sua identidade unitária".
Trata-se, portanto, de um tema desafiante e que nos leva a discussão sobre a velha iconografia dos "Dois caminhos" para outros temas correlatos. Por isso, reservamos para um futuro artigo uma discussão sobre esse assunto. Nele iremos nos ater ao surgimento de novas versões do quadro "Os dois caminhos"; avaliaremos o contexto de mudanças na mentalidade e na teologia dos evangélicos atuais. Tal processo de corrosão tornou a versão aqui reproduzida e estudada um exemplo raro frente a novas versões facilmente localizáveis na Internet, num contexto marcado pela incapacidade de se manter as formas. A "modernidade líquida" ocupa o lugar da "modernidade sólida" (BAUMAN, 2001).
"Entrai pela porta estreita; porque larga he a porta, e espaçoso o caminho que leva a perdição, e muitos são os que por elle entrão porque estreita he a porta, e apertado o caminho que leva à vida: e poucos há que o achão". (Bíblia Sagrada, S.Matheus, 7.13-14, traduzida pelo padre (sic) João Ferreira A. D'Almeida, Sociedade Americana da Bíblia, 1860).
1 Este artigo é dedicado ao Prof. Dr. Duglas Teixeira Monteiro (1926-1978), Professor da USP, falecido prematuramente em um acidente na cidade do Recife. Monteiro foi o primeiro sociólogo da religião a estudar a gravura "Os dois caminhos" e a encará -la como uma síntese da teologia do protestantismo missionário, puritano e pietista, no Brasil dos séculos XIX e XX.
2 Uma cópia do original alemão (1866) pode ser visto em (OOKABOO, 2014 ), enquanto a versão inglesa (1883) pode ser vista em (KIRKHAM, 2014) ou tal como está depositada no Museu Britânico: (BRITISH, 2014).
3 Temos encontrado exemplares dessa gravura em lares evangélicos ou até de católicos da Renovação Carismática. Lyndon de Araujo Santos (2006), pesquisador da Universidade Federal do Maranhão, a quem sou grato por importantes informações sobre a origem dessa gravura, nos informou ter notícias da exposição de um exemplar em um terreiro de Tambor de Mina, na cidade de São Luiz. Na sede da Missão de Basiléia está arquivada uma fotografia de uma versão modificada e adaptada à visão de mundo oriental exposta em Singapura, na qual se pode ler nas margens: "Com os cumprimentos de Abeo Thio Chan Boh, Hospital Geral de Singapura, 1939" ( USC Libraries, 2014). São esses apenas dois exemplos de como chegou tão longe a circulação da gravura aqui analisada.
4 Os antepassados do autor deste texto, do lado materno, família Amaral Camargo, aderiram ao presbiterianismo na atual cidade d e Porangaba (então Bela Vista de Tatuy) em 1885. Já do lado paterno a adesão se deu na vizinha cidade de Bofete, na primeira década do século XX.
5 Alain BESANÇON (1997) produziu uma interessante análise da iconoclastia, especialmente da oposição de João Calvino quanto às imagens e ao uso delas no culto ou no cotidiano dos cristãos. Todavia, como B esançon ressalta (1997, p.306), "o espírito calvinista, ao mesmo tempo em que impõe a iconoclastia, deixa a luz icônica banhar as imagens seculares, que ele tolera, ou melhor, autoriza ." Daí a indagação de que forma o protestantismo pietista, puritano e iconoclasta traduz a sua teologia em imagens e as imagens em palavras?
6 As relações entre religião e cultura visual, em especial, uma análise das imagens relacionadas com o estímulo visual da pieda de tem sido objeto de estudos de David MORGAN em vários textos, entre outros de 1998, 2005 e 2008, nos quais ele examina a cultura religiosa e midiática norte-americana. Karina BELLOTTI (2010) aplicou à cultura midiática evangélica infantil brasileira conceitos propostos por Morgan, aliando-os as discussões relacionadas a teoria da modernidade. O resultado foi uma excelente contribuição ao conhecimento das formas como a produção cultural religiosa norte-americana foi recebida e retrabalhada no interior de uma cultura de tradição católica pelos vários grupos protestantes e pentecostais no Brasil. Bellotti sinaliza nessa discussão a saída da produção cultural evangélica do âmbito denominacional sob a égide da modernidade para tempos de transconfessionalização e de pós-modernidade.
7 Examine alguns resultados da investigação de Helmut RENDERS (2009, 2013) sobre as iconografias usadas no Livrinho do Coração e em outras iconografias cristológicas.
8 Gawin KIRKHAM publicou em Londres, em 1888, um pequeno livro sobre as origens da gravura The broad and the narrow way . Esse seu texto se tornou uma excelente, talvez a única contribuição para elucidar as origens da gravura Os dois caminhos . Esse seu texto ainda era desconhecida no Brasil quando Duglas Teixeira MONTEIRO (1975, p. 21-25) escreveu a respeito da gravura "Os dois caminhos".
9 ALVES (1979), embora sem se referir às análises de MONTEIRO, que foram anteriores as dele, inseriu em seu Protestantismo e repressão uma bela abordagem das dimensões ética e gnoseológica da gravura "Os dois caminhos".
10 Dos pesquisadores acima nomeados, somente o historiador da cultura protestante brasileira, Lyndon de Araújo SANTOS (2006) tomou conhecimento das informações contidas no livreto de Gawin Kirkham (1888), que pode ser localizado no site www.pictureweekly.com. Kirkham era um pregador que realizava as suas preleções ao ar livre, isto é, nas ruas e praças de Londres. Ele mandou pintar e usou durante anos (por 1.118 vezes) a gravura The broad and the narrow way em forma de outdoor, medindo 3,65m por 2,74m, iluminando-a artificialmente para apresentações noturnas. Esse pregador recuperou a história da gravura desde a Alemanha até a sua divulgação pela Morgan & Scott, de Londres, a partir de 1883. Mas, por tê-la descoberto na Holanda gostava de se referir a ela como "minha gravura holandesa".
11 Sitz im Leben é uma expressão vindo da hermenêutica alemã do Antigo Testamento que significa uma preocupação com a recuperação da configuração da vida social quando uma narrativa surgiu.
12 Birgit Meyer (1999) faz referência à circulação dessa gravura na África. Ewaldo Ferle (1911-2005), um imigrante russo no Brasil nos contou que em sua infância, vivida numa colônia de imigrantes alemães no interior da Rússia (de onde sua família fugiu durante a revolução comunista), entre 1910 e 1917 havia na casa deles uma versão em alemão dessa gravura. No Brasil a família Ferle (luterana) também tinha um exemplar em português, em sua casa, na cidade de Mauá, SP. Recebemos de Lídia Ferle (sua filha) uma cópia durante nossas investigações no Grupo Interdisciplinar de Pesquisa do Protestantismo na Umesp. Um bom exemplo da disseminação dessa gravura no mundo rural brasileiro aparece nos escritos de BAHIA, Joana D'Arc do Valle (2006), em "O tiro da bruxa: o olhar má gico das pomeranas sobre o cotidiano camponês" relata suas pesquisas sobre cultura e questões de gênero em comunidade de pomeranos estabelecida no Estado do Espírito Santo desde 1870. Ela notou a presença nos lares pomeranos do quadro "Os dois caminhos". P ara ela, ess e quadro representa "o microcosmo da aldeia camponesa" com a presença de um conjunto de valores de tradição luterana pietista que rege inclusive as questões de gênero naquele aldeamento interiorano .
13 Antes de continuar vale a pena relembrar de Robert HERTZ (1980. p. 109), que apontou para a força das dicotomias presentes nas formas de se organizarem as culturas humanas análogas ao corpo humano: "A sociedade e todo o universo tem um lado que é sagra do, nobre e precioso, e outro que é profano e comum [...] ou, em duas palavras, um lado direito e um lado esquerdo". Na gravura aqui analisada prevalece o dualismo desde o início dos dois caminhos até o resultado final - céu ou inferno.
14 O próprio Lutero, segundo COTTIN (1994, p.265), considerava que as imagens estão subordinadas à palavra, tendo finalidade didática, portanto, exercendo uma função catequética, acompanhando a palavra na pregação. Calvino, por sua vez, foi um feroz inimigo do que ele chamava de "imagens papistas" de Deus. Em sua luta iconoclasta, s egundo Alain Besançon (1997:301) o reformador de Genebra desdivinizou o mundo, recusando que qualquer coisa da natureza criada por Deus pudesse espelha-Lo: "O céu e a terra, em lugar de espelhar a glória divina, são um teatro desertado e neutro em cujo palco o sujeito individual é capaz,valendo-se da graça, de sentir por experiência Deus" conclui Bezançon. Por sua vez, MORGAN (1999,2014), ao historiar o lugar das iconografias no protestantismo norte-americano nos ajuda na avaliação do papel do imaginário nos missionários daquele País que vieram para o Brasil, especialmente no que se refere a produção de tratados bíblicos impressos (2014, p.233).
15 A doutrina das "penas eternas" , que faz parte da Teologia defendida por cristãos católicos e protestantes, afirma existirem dois destinos para as pessoas após a morte: céu ou inferno. Como prova dessa importância, recordamos que no final dos anos 1930, instalou-se uma briga teológica ferrenha entre os pastores e lideres da Igreja Presbiteriana Independente brasile ira. Uns, os "conservadores" eram a favor da tradicional doutrina das "penas eternas". Do outro lado estavam os "liberais" que negavam ou duvidavam da penalidade eterna dada por Deus aos pecadores não-convertidos, isto é, eles iriam para o inferno e lá permaneceriam por toda a eternidade. Desse conflito surgiram em 1940 dois grupos dissidentes: Os presbiterianos conservadores formaram a su a própria denominação, que continua até os dias de hoje, enquanto um grupo de intelectuais, vários de seus integrantes , era formado por professores na Universidade de São Paulo - USP, fundou uma comunidade que funcionou por mais de 50 anos sob o nome de "Igreja Cristã de São Paulo".
16 Há textos que circularam entre os cristãos na passagem do primeiro para o segundo século em que a dualidade de caminhos é explicitada mais ainda do que no texto atribuído ao evangelista Mateus (7.13 e 14). O primeiro desses textos, intitulado Didaque ou Ensino de Jesus por meio dos 12 Apóstolos ,(1997) é do final do primeiro século, e não foi considerado canônico pela Igrej a cristã. No entanto o seu conteúdo está profundamente ligado ao texto de Mateus: " Há dois caminhos. O caminho da vida e o caminho da morte. Há uma grande diferença entre os dois" (cap.1, verso 1). Mais adiante, depois de enumerar as características do caminho da vida, o autor apresenta o caminho da morte: "O caminho da morte é contrário aquele. Para começar é mau e cheio de maldições, adultérios, homicídios, falsos testemunhos, fornicações, maus desejos, atos mágicos, poções m alditas, roubos, vãs superstições, furtos, hipocrisias, repugnâncias, malícia, petulância, cobiça, linguajar imoral, inveja, ousadia, soberba, orgulho, vaidade" (cap. V, v.1). Um segundo texto que também expressa semelhante visão pode ser encontrada Epistola de Barnabé (1985, cap.19), um documento considerado apócrifo, fala a respeito dos dois caminhos: "Este é o caminho da luz: se alguém quer andar no caminho e chegar ao lugar determinado, que se esforce em suas obras. Eis, portanto, o conhecimento que no s foi dado para andar nesse caminho." Segue-se uma lista de ações corretas, compatíveis com o caminhar na luz. Já sobre o outro caminho ele afirma: " O caminho da treva é tortuoso e cheio de maldições. De fato, em sua totalidade, ele é o caminho da morte eterna nos tormentos. Nele se encontram as coisas que arruínam a alma dos homens: idolatria, insolência, altivez do poder, hipocrisia, duplicidade de coração, adultério, homicídio, rapina, o rgulho, transgressão, fraude, maldade, arrogância, feitiçaria, magia , avareza e ausência do temor de Deus."
17 Sobre as representações e configurações culturais produzidas por missionários norte-americanos no Brasil é estimulante para nossas pesquisas o texto de Eliane Moura da Silva (2014, p. 211ss).
18A gravura desenhada por John Haileer mede 32,2 cm. de diâmetro, está exposta na National Museum of American History, Smithsouian (www.americanhistory.si.edu). O círculo tem no centro um templo e duas casas. Do lado esquerdo está uma trilha que leva para o inferno, passando por cenas de violência, com referências a pecados condenados pela moralidade protestante, mais acima, margeando a estrada há uma taverna e uma prisão estatal, logo mais as chamas do inferno onde os corpos dos infelizes estão em queda livre. Do lado direito, a estrada passa na frente do templo. As pessoas caminham tendo ao lado dizeres com algumas qualidades que devem ser cultivadas pelos peregrinos, que antes de chegar ao final da estrada passam em frente ao prédio de uma universidade, que contrasta na mesma linha reta com a prisão estatal, do outro lado. O céu é representado por alguns anjos e no centro uma bíblia aberta.
19 Nessa gravura de Hailer, do lado direito está o caminho que leva a vida eterna. Nele aparecem as palavras: humildade, fé em Cristo, coração puro, virtude ou justiça, universidade, evitar o mal, casa de Deus, paz, indústria, saúde, verdade, e sabedoria. Duas construções aparecem no lado direito: uma universidade e uma fábrica. No centro, entre os dois caminhos está uma igreja (casa de Deus) e, na base do desenho, obediência aos pais e professores. Há um único atalho que leva até a universidade. Ali uma inscrição tirada da Bíblia: "Todo caminho do homem é reto aos seus olhos, mas o Senhor sonda os corações" (Prov.21.2). Do lado esquerdo que conduz à destruição e ao castigo eterno, predominam as palavras para designar imagens ligadas ao império do mal: Forca, assassinato, a dultério, roubo, falsificação, xingamento, traição, hipocrisia, intemperança, jogos de azar, casa do pecado, morte, orgulho, vaidade, luxúria, vergonha, doença e na base do desenho, desobediência aos pais e professores. Cabe ressaltar, que há significativas semelhança s entre as marcas da "ética protestante" e o "espírito do capitalismo" tal como estudado por Max Weber (2004).
20 Cf. Ângela Rodolpho PAIVA (2011, p.31) usou essa pintura para chamar a atenção às diferenças culturais existentes entre a fé protestante nos EUA e a maneira católica de engajamento na sociedade, em especial como foi o caso objetivado na luta abolicionista. O artigo afirma que "lá como aqui, a religião ajudou a moldar a sociedade. Mas cada um com a sua cruz", isto equivale a afirmar , que em cada cultura a mesma fé pode produzir formas específicas de inserção social.
21 Max WEBER (2004) ao estudar "ascese protestante" e "espírito do capitalismo" buscou em Richard Baxter (1615 -1691) exemplos de aproximação entre a teologia puritana e o capitalismo. Há no livro de Weber dezenas de citações de Baxter, que foi um dos dois autores (o outro é Bunyan) preferidos pela Sra. Reihlan (ver KIRKHAM, 1888, p. 8). Aqui temos uma boa pista para inserir "Os dois caminhos" ao lado da gravura de John Hailler, ambas da mesma data, porém, produzidas em lugares tão distantes. No entanto, é bom relembrar que o pietismo e o puritanismo inglês, de Wesley e de outros, foi muito importante para gerar crentes carregados de paciência par a suportarem a primeira fase da revolução industrial inglesa. Eles esperavam as recompensas na vida após a morte - no céu.
22 Valeria a pena uma análise da inserção da gravura "Os dois caminhos" num mercado de bens simbólicos que foi sendo formado, especialmente a partir dos EUA, no século XIX. Nessa tarefa um embasamento sociológico pode ser colocado a partir das contribuições de Pierre BOURDIEU (1996, p.330 e 348) sobre o enraizamento histórico da percepção artística e sobre "a gênese social do olho "; e as de Peter Berger (1985) que propõe a análise de um cenário em que a religião está deixando de ser uma imposição da tradição para se tornar uma escolha individual. Daí o pluralismo e a competição que deu ao campo religioso o status de mercado religioso. Sobr e a formação do "mercado religioso" brasileiro veja Lemuel Dourado GUERRA (2003). Também fazemos referên cia aqui "às contribuições de David MORGAN e de Vicente J. MILLER (2003), e de R. Laurence MOORE (1994).
23 Simon SHAMA (1993) estudou a cultura holandesa popular protestante a partir da produção artística na qual a gravura "Os dois caminhos" foi rapidamente incorporada, tanto que, Kirkham, seu divulgador em praças públicas em Londres, se referia a gravura como "meu quadro holandês".
24 A oposição entre os extremos, comum também nesse cenário de abandono do momento presente, recebeu uma interessante interpretação por parte da Antropologia ligada aos círculos de Emile Durkheim, entre eles, Robert HERTZ, que estudou a polaridade entre a mão direita e a esquerda como um sinal da polaridade entre sagrado e profano.
25 John Bunyan foi um pregador leigo, e funileiro de profissão. Esteve no cárcere por 12 anos, entre 1660 e 1672, no reinado de Charles II. Foi condenado por apresentar uma religiosidade demasiadamente livre do controle institucional governamental e da Igreja oficial inglesa. Ele, que havia se tornado batista em 1655, insistia em pregar em espaços públicos, atividade então proibida a leigos. Na prisão teve alguns sonhos, que transformados em livro, se tornou um best-seller nos séculos posteriores, sob o título: O peregrino - ou a viagem do cristão à cidade celestial. Logo a seguir escreveu A peregrina no qual "Cristiana", a mulher, de "Cristão", personagem principal do livro, acompanhada dos filhos, abandona também a cidade "Perdição" e se lança na peregrinação em busca da "Jerus além Celestial". Uma rápida referência a Bunyan pode ser encontrada em A Encyclopedia Columbia (2013).
26 A origem desse sentimento de despreocupação com o mundo por parte dos pietistas do início do século XVII pode também estar ligada ao contexto da Guerra dos 30 Anos, quando as matanças sucessivas passavam a uma grande parte da população a ideia de que era mais interessante aproveitar e gozar o momento presente do que se preocupar com a sobrevivência por um tempo maior. Os pietistas reagem, embora como minoria religiosa, a essa tendência que fazia renascer a afirmação dos tempos neotestamentários: "comamos e bebamos que amanhã morreremos".
27 O Peregrino de Bunyan foi traduzido para mais de 200 idiomas . Sobre a história da transnacionalização desse livro remetemos o leitor para a análise de Isabel Hofmeyer (2004).
28 Veja por exemplo a letra de um conhecido cântico protestante brasileiro: "Da linda pátria estou bem longe; Cansado estou; Eu tenho de Jesus saudade; Oh! quando é que eu vou! Passarinhos, belas flores, querem me encantar. Oh! terrestres esplendores! De longe enxergo o lar". (Salmos e Hinos, no 403). Outro cântico diz: " Sou forasteiro aqui, em terra estranha estou. Celeste pátria, sim, é para onde vou; Embaixador, por Deus, de reinos dalém Céus; Venho em serviço do meu Rei ". (Salmos e Hinos, no 544).
29 Os primeiros exemplares da gravura introduzidos no Brasil eram impressos na Inglaterra, Alemanha ou em Portugal. Em um exemplar ao qual tivemos acesso, exposto numa das salas da Igreja Presbiteriana Independente de Vila Maria, então pastoreada pelo Rev. Milton dos Santos, lia-se que a impressão foi feita pela firma "Marshall, Morgan & Scoth, Ltd. 12, Pasternoster Bldgs. London; direitos no Brasil: Ricardo Mayorga, R. Garcia D'Ávila, 76, Rio de Janeiro. Printed in Germany". Foi dessa matriz que a Casa Editora Presbiteriana tirou algumas edições num período anterior aos anos 1950. Trabalhamos com essa edição dos presbiterianos, a qual foi fotografada por nós.
30 A decisão entre os dois caminhos é um corolário da doutrina armlniana (Jacob Arminius, 1560-1609) do livre arbítrio que ensina, ao contrário da predestinação calvinista, que o ser humano tem a chance de escolher o seu caminho em direção à eternidade por meio do arrependimento e da conversão. A ação do pregador na entrada da porta estreita (Figura n.3) reflete bem essa possibilidade de escolha. A. MYATT (2003,p.21-38) faz um bom contraste entre o livre arbítrio entre os protestantes reformados e a sua concepção em vários outros movimentos religiosos.
31 O uso do crucifixo com imagem de Jesus é objeto de controvérsia entre protestantes brasileiros como resultado da iconoclastia. Essa é uma das poucas iconografias protestante em que a cruz não aparece vazia. Na polêmica dos protestantes com o catolicismo a c ruz vazia é a opção d eles, pois, é símbolo do Cristo ressurreto, enquanto o "Cristo morto" é visto como uma reprodução "idolátrica" de Jesus, presente sempre nos rituais católicos. Para um estudo das imagens relacionadas a cristologia recomendamos Helmut RENDERS (2013).
32 A Escola Dominical foi uma notável instituição encarregada da educação religiosa nas igrejas protestantes desde a sua invenção n o final do século XVIII, na Inglaterra. O surgimento dessa instituição também está ligado ao pietismo, que enfatizava o estudo da Bíblia desde a infância dentro de um clima devocional. O movimento Escola Dominical arregimentou, especialmente, crianças e recém - convertidos para instruí-los e educá-los religiosamente. Além do pietismo, o movimento de Escola Dominical também resulta do puritanismo e dos reavivals . No Brasil muitas igrejas protestantes de missão tiveram como berço uma Escola Dominical.
33 O arminianismo é um movimento que surgiu na passagem do século XVI para o XVII e teve em Jacob (Tiago) Arminius (1560-1609) seu sistematizador. Os arminianos (em especial os seguidores de John Wesley, originador do metodismo inglês) defendiam, em oposição aos calvinistas extremados (que pregavam a predestinação) o livre arbítrio. Isto é, na doutrina do livre arbítrio o ser humano não é coagido em sua decisão pela salvação ou perdição mas que Deus os fez livres para decidirem por este ou aquele caminho.
34 Aqui deve haver o dedo de Gawin Kirkham, que era pregador em praças públicas e usou essa gravura centenas de vezes, montada n a forma de um outdoor em suas pregações em ruas, praças e avenidas de Londres.
35 Um caipira (camponês de cultura rústica) do interior do estado de São Paulo, quando perguntado por nós o que no quadro "Os do is caminhos" mais o assustava ele disse: "O zoião xereta que enxerga tudo o que a gente faiz" (sic). Um padre católico nos informou que no seminário onde ele estudou esse triângulo era pintado nas paredes do dormitório e até nos banheiros para evitar que atitud es suspeitas estimulassem o pecado contra a castidade. O pesquisador Lyndon Araujo, da Universidade Federal do Maranhão, nos disse ter visto um exemplar desse quadro em um terreiro de Tambor de Mina na cidade de São Luis. Há informações também de seu uso entre católicos carismáticos.
36 Encontramos sites na Inter net que expõem as várias origens e significados atribuídos ao "olho que tudo vê". No site www.wikipedia.org/wiki/Olho_da_Providencia há uma amostra da complexidade no nível das origens e de significação dada a esse símbolo. Ali também há um artigo que oferece alguns exemplos de associação desse símbolo com outros de tradições esotéricas. No entanto, qualquer site de busca (Google, por exemplo) indica milhares de páginas sobre históricas formas de se usar, de se ver e de apropriação do "olho que tudo vê" nas religiões, economia e sociedades esotéricas.
37 Jeremy Bentham desenhou uma prisão ideal em 1785 a que deu o nome de panóptico. Michel FOUCALT (2008) usou dessa expressão para analisar os sistemas sociais de disciplina e controle assumidos pela nossa sociedade. Poderíamos imaginar que "o olho que tudo vê" se insere dentro dessa imagem de uma divindade panóptica?
38 O contraste de cores mostra que do lado da salvação predomina o verde, enquanto, ao longo do caminho largo predominam as cores clara e vermelha. Todo o trecho está desmatado e há pouco verde. Apenas uma fileira, com seis pequenas árvores, logo após o cassino, se alinha com cinco árvores colocadas logo após o espaço intermediário, onde um pregador ao ar-livre chama alguns à decisão (Figura no 4).
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Leonildo Silveira Campos
Artigo recebido em 14 de janeiro de 2014 e aprovado em 02 de Junho de 2014.
* Doutor em Ciências da Religião. Professor da Universidade Metodista de São Paulo. País de origem: Brasil. E-mail: [email protected]. 1
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Copyright Pontificia Universidade Catolica de Minas Gera, Programa de Posgraduacao em Ciencias da Religiao Apr-Jun 2014
Abstract
For more than 70 years, it was common to see in Brazilian Protestant Christian homes a picture hanging on the wall: "The Two Ways" picture, originated in Germany in the middle of the 19 th century, further enhanced in the Netherlands, and disseminated from England to the entire world in the late 19th century. Since then, it has been one of the Protestantism's most well known cultural productions. This picture was then brought to missionary fields, used for preaching and indoctrination, since it summarizes the Protestant Puritan message. This iconography is a model and conveys a well-defined vision of boundaries, establishing precise limits for the behavior of Christians. Today the picture is out of circulation. However, understanding the "two way" picture helps us deepen our knowledge about the Protestantism that spread throughout Brazil's rural areas and small cities.
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