Resumo
Analisa-se o sentido histórico-social das expressões rûaH yhwh ("espírito de Yahweh"), rûaH-rä'â më'ët yhwh ("espírito mau desde junto de Yahweh"), rûaH-'élöhÎm rä'â ("espírito mau de Deus"), rûaH-'élöhÎm ("espírito de Deus") e rûaH härä'â ("espírito mau"), de e em 1 Sm 16,14-23. Postula-se a identidade comum de todos esses personagens noológicos. Guiado por um exercício de crítica aplicada a versões da passagem, bem como pela consulta crítica por amostragem de comentários internacionais, aplica-se análise retórica e histórico-social à narrativa. Conclui-se que, no horizonte de produção do texto, concebia-se essa figura celeste como o equivalente noológico de oficiais a serviço de reis, incumbidos de atividades que tanto podiam ser classificadas eticamente como boas quanto más, correspondendo tal concepção teológica ao estado da cultura judaico-israelita pré-persa. Não se trata de dois personagens: o "espírito de Yahweh" / o "espírito de Deus", de um lado, e o "espírito mau (de Yahweh ou de Deus)" de outro, mas da descrição diferenciada da mesma figura em conformidade com a ação interpretada como realizada por ele no exercício de sua prestação de serviços ao deus-rei.
Palavras-chave: 1 Sm 16,14-23. Espírito de Yahweh. Espírito de Deus. Espírito mau de Yahweh. Espírito mau de Deus. Espírito mau.
Abstract
The sociohistorical meaning of the expressions rûaH yhwh ("spirit of Yahweh"), rûaH-rä'â më'ët yhwh ("evil spirit from Yahweh"), rûaH-'élöhîm rä'â ("evil spirit of God"), rûaH-'élöhÎm ("spirit of God") and rûaH härä'â ("evil spirit") of and in 1 Sm 16.14-23 is analyzed. The common identity of all these noological characters is postulated. Guided by an exercise of criticism applied to versions of the passage as well as the critical search of samples of international commentaries, rhetoric and the social-historical analysis is applied to the narrative. It is reasoned that, in the text's production horizon, this celestial figure is conceived as the noological equivalent to officials at service of kings, responsible for activities that could be classified as both ethically good and bad, such theological conception correspond to the pre-Persian state of Jewish-Israeli culture. They are not two characters: the "spirit of Yahweh" / "spirit of God" on one side , and the "evil spirit (of Yahweh or God)" on the other, but different descriptions of the same figure in accordance to the action interpreted as carried out by him in the provision of services to the god-king .
Keywords: 1 Sm 16,14-23. Spirit of Yahweh. Spirit of God. Evil spirit of Yahweh. Evil spirit of God. Evil spirit.
Introdução
1 Sm 16,14-23 é, talvez, um dos textos da Bíblia Hebraica com maior concentração de - seja-me permitido dizê-lo - erros (intencionais?) de tradução. Trata-se da passagem do famigerado "espírito mau 'da parte do Senhor'", encarregado por este de atormentar o rei Saul. Considerando as referências ao atormentador nos versos 14, 15, 16 e 23 (2x), o comportamento de algumas versões bíblicas (consultadas) revela-se no quadro a seguir.
Consideradas, no seu conjunto, as traduções apresentadas, poder-se-ia contar a seguinte história que, supostamente, seria, então, a história narrada em 1 Sm 16,14-23. Por divino descontentamento com ele, Saul vê-se atormentado por um espírito mau que Deus enviara com o fim de "atazanar" o desgraçado rei (v. 14). Entendidos das questões da "baixa espiritualidade cotidiana", os servos do rei de imediato identificam o fenômeno e o relatam ao próprio: trata-se de um espírito mau que Deus envia para atazanar as pessoas (v. 15). Os servos também conhecem o remédio - dedilhar uma lira. É necessário, pois, contratar um músico dessas artes experiente e, assim, toda vez que o espírito mau que Deus envia para atazanar as pessoas for enviado, bastará que o terapeuta toque e, pronto, o espírito mau que Deus envia retorna para o lugar de onde veio (v. 16). Saul faz isso e finda por contratar Davi (v. 17-22). A história termina dizendo o óbvio - todas as vezes que o espírito mau que Deus envia para atazanar as pessoas vinha sobre Saul, Davi tocava a lira e o espírito mau ia embora (v. 23).
Do ponto de vista do texto hebraico, a história é e não é exatamente essa. Na estrutura geral, é. Trata-se, a rigor, de um espírito que se põe a atazanar o pobre coitado do rei. O problema é a identidade pressuposta desse espírito. Como se verá, o texto hebraico não (me parece) deixa(r) margem de dúvida quanto à identidade desse espírito. No caso das versões, da mesma forma, parece correto assumir que não há dúvidas de quem se trata - neste caso, esse espírito mau, maligno, deprimente, da parte de Deus, enviado de Deus, vindo de Deus, só pode ser o "diabo"1 ou algum espírito - distinto do de Deus, mas sob as suas ordens. Nos dois casos, o texto hebraico e as versões, não resta dúvida quanto à identidade do espírito. O problema é que a identidade dele não é, sob nenhuma circunstância, a mesma nas versões e no texto hebraico. As versões não o identificam - esse espírito mau - com o "espírito de Deus". Pelo contrário, a identidade tende a ser contornada. No texto hebraico, todavia, ela é nítida e de difícil desvio. Para demonstrá-lo, recorramos à análise dessas expressões, tanto no texto hebraico quanto em sua atualização nas versões consultadas.
1 Não se trata tanto de indicar a submissão do espírito à ordem do deus quanto de indicar a origem divina do espírito
A expressão hebraica que as versões traduziram por "um espírito da parte de", "enviado por" ou "vindo de" Deus é rûaH-rä'â më'ët yhwh. Não me parece haver qualquer problema com a tradução "espírito mau" ou "espírito maligno" com que a maior parte das versões traduz as duas primeiras palavras (rûaH-rä'â). Trata-se de um "espírito de desgraça", um "espírito do mau", "um espírito mau"2 - de fato. O problema é a expressão më'ët. As versões ou a transformam em verbo ("vindo", "enviado"), ou a traduzem como uma referência à circunstância desse "envio" ("da parte de"). Não me parece exatamente o caso, conquanto a opção pelo verbo "vir (de)" carregue bem precisamente a ideia expressa pelo uso veterotestamentário de më'ët.
Seja como for, é preciso esclarecer um ponto importante do uso de më'ët em 1 Sm 16,14. Tome-se o Dicionário Bíblico Hebraico-Português. Nele, a expressão më'ët encontra-se inserida no verbete 'ët 2, onde se pode ler: "significa o lugar/pessoa de procedência: de, desde, a partir de, da parte de, por disposição de. Às vezes pede uma tradução sintética ou não se traduz" (ALONSO-SCHÖKEL, 1997, p. 84). A expressão "da parte de" é aquela empregada em Almeida e Vozes. O fato de apenas elas a empregarem poderia emprestar-lhes um ponto positivo, já que as demais ou transportam o sentido da fórmula para o campo clínico ("deprimente") ou recorrem à opção de verbos ("vir", "enviar"), não consubstanciados no dicionário - ainda que pressuposto, se assim se entende.
Todavia, não é a única alternativa. Talvez sequer se pudesse recorrer a ela, a despeito do dicionário. Recorrendo-se às ocorrências de më'ët na Bíblia Hebraica revela o sentido de deslocar-se [seja o que for e por qualquer razão] de um ponto x a um ponto y ou desde uma pessoa [qualquer que seja] a até uma pessoa b. Pode-se assumir que se trate de uma expressão que carrega sentido topográfico - fala-se, com ela, do movimento de uma grandeza desde um ponto a outro - e mais: o ponto está sempre ligado ao lugar onde se situam os atores da narrativa. Por exemplo, Gn 17,27 (escravos); 19, 24 (fogo); 23,20; 25,10; 49,30.32; 50, 13 (sepultura); 27,30 (Esaú); 38,1 (Judá); 43,34, 47,22 (refeição); Ex 5,20; 10,11 (Moisés e Arão); 11,2 (ouro e jóias); 25,2; 29,20; 30,16 (oferta); 27,21 ("estatutos" - Lv 24,8); Lv 7,34 (sacerdócio); 7,36; 10,4 (grupo(s) de pessoas); 25,15 (próximo) etc. Nesses casos citados e nos demais, as grandezas deslocam-se desde a posição do personagem a até a posição do personagem b. Não se poderia interpretar essas passagens como se a grandeza deslocada proviesse de uma terceira topografia, para além dos lugares em que se situam os personagens envolvidos. Por essa razão, deve-se interpretar que 1 Sm 16,14 não está se referindo a uma eventual ordem que Yahweh tenha dado ao "espírito" (deixemos sua identidade para adiante).
A despeito de que seja óbvio o fato de que o "espírito" tenha ido atazanar o coitado do rei por explícita determinação divina, não é exatamente intenção da narrativa mais declarar isso do que a informação que presta de que a origem desse "espírito" é o próprio Yahweh: não se trata de enfatizar que o "espírito" está a serviço de Yahweh, mas de declarar - e como fato notório - que o "espírito" está (sempre) junto de Yahweh como sua companhia natural e que, para atazanar Saul, ele sai de junto de Yahweh e para o palácio vai, quem sabe, com prazer... A tradução "da parte de", conquanto carregue um percentual do sentido, está, a meu ver, longe, muito longe de dar conta do sentido literal da fórmula. A rigor, constitui a justaposição de duas palavras independentes - min (que significa, literalmente, "desde", indicando origem de movimento) e 'ët (que significa "junto"). Unidas, mas lidas na sua literalidade, soaria algo como "desde junto", e a expressão de 1 Sm 16,14 quereria dizer que "um mau espírito desde junto de Yahweh" teria desde lá se deslocado até Saul e passado a atazanar o coitado3. Por ordem de Yahweh? Não se duvide - mas, se queremos dar atenção à força comunicativa da expressão hebraica, quer-se mais dizer desde onde ele vem do que em nome de quem ele vem. A questão que se põe - pois - é: que "espírito" é esse, então, que fica junto de Yahweh e que, para atazanar Saul, sai de onde estava, isto é, desde junto de Yahweh, e vai fazer o serviço - digo? digo! - sujo do "Senhor"...?
Antes, porém, de enfrentarmos a pergunta, retornemos às versões. Se a análise está correta, apenas as versões da Bíblia de Jerusalém e da TEB guardam o sentido "bíblico" de më'ët, quando traduzem, respectivamente, "um mau espírito, procedente de Yahweh" e "um espírito maligno, vindo do Senhor". As demais, a meu juízo, não expressam o sentido do texto - que é dizer que um espírito (quem é ele?) que estava junto de Yahweh (logo se verá: que sempre está junto dele!), sai de junto de Yahweh, desloca-se e vai ter com Saul - e não para lhe fazer bem. Pudera! É um "espírito mau"... As versões que optam pelo "clássico" "da parte de" ou pela forma verbal "enviado por" concentram-se na circunstância da ordem - Yahweh é quem mandou o espírito-, mas não são gramaticalmente precisos em determinar a origem desse espírito. Obviamente, alguém enviado por um terceiro pode ter-se deslocado, para cumprir a ordem, a partir de uma posição (um lugar!) que não coincidia necessariamente com a posição de quem lhe incumbira da tarefa - por exemplo: o espírito podia ter estado o tempo todo no sheol, por exemplo, Yahweh lhe dá, desde seu templo celeste, a ordem de ir atazanar Saul, e ele, o espírito, desde o sheol, mas sob as ordens de Yahweh, lá se põe a serviço, pau mandado que é e sempre foi, são coisas da teologia mal acabada que herdamos... Tanto "da parte de" quanto "enviado por" podem sustentar, tanto consciente quanto inconscientemente, uma alteração de identidade do "espírito" - porque, se há de pensar: esse espírito mau só pode ser aquele espírito mau, e aquele espírito mau, todo mundo sabe, não fica junto de Yahweh... Se já as versões da Bíblia de Jerusalém e da TEB se permitem sustentar - ainda elas! - essa interpretação equivocada da passagem, quanto mais aquelas que facilitam a transferência de identidade do espírito, dando a ele morada alhures em relação à morada de Yahweh!...
2 "Um espírito mau de(sde) Deus", não um "espírito mau enviado por Deus"
Quanto a 1 Sm 16,15.16, salva-nos a Bíblia Vozes. As demais, se for permitida a retórica, não seriam aprovadas em uma aula de primeiro ano de Hebraico Instrumental. Em 1 Sm 16,15 - e também no v. 16 (as ocorrências são literalmente as mesmas), a expressão hebraica é rûaH-'élöhÎm rä'â. Literalmente, quer-se dizer, "espírito mau de Deus". Apenas isso. Não se pode fazer a fórmula querer dizer o que, todas, exceto a versão da Vozes, diz. Não se trata de "um mau espírito" (Peregrino). "Espírito mau" seria rûaH rä'â. Não é o caso. A Peregrino faz desaparecer 'élöhÎm. Já as demais, em lugar de fazer desaparecer uma palavra, fazem aparecer outras. Como assim, "um mau espírito vindo de Deus" (Jerusalém, TEB)? De onde saiu o "vindo"? Como assim "um espírito maligno da parte de Deus" (Almeida)? De onde veio esse "da parte de"? Como assim "um espírito deprimente enviado por Deus" (CNBB, Pastoral)? De que mundo veio esse "enviado por"? Salva-nos a Vozes - o "espírito mau de Deus". Perfeito. Não há outra forma de traduzir rûaH-'élöhÎm rä'â que não seja "espírito mau de Deus". Tanto faz "um" ou "o". Se se trata 'élöhÎm como nome próprio, a flagrada forma construta dispensaria o artigo, mas o pressuporia. É uma questão, pois, praticamente subjetiva - e, nesse caso, irrelevante.
Pois bem, trata-se, então, de "um" ou d"o espírito mau de Deus". Faz todo sentido. Se já sabíamos que se tratava de um "espírito" que ficava junto de Yahweh, não podia ser outra figura que não "um espírito mau de Deus". Naturalmente que a teologia cristã, que, sub-repticiamente, age em muitas versões, há de estranhar isso. E tanto que as versões, mesmo aquelas que fazem um bom trabalho em um ou dois versos, dentre os cinco, acabam trabalhando a favor da dissolvição textual da identidade do "espírito". Seja como for, não se está interessado na teologia cristã quando se está a traduzir um texto hebraico de - pelo menos - 2.700 anos! A função do tradutor - quando mais se confunda o seu papel com o papel do exegeta (há como separá-los?) - é traduzir. Explicar o que é isso que vem à tona desde séculos e milênios atrás é tarefa segunda, submissa, quero crer, primeiro, aos reclames da transparência no trabalho de tradução do texto.
Sendo assim, deparamo-nos, até aqui, com um quadro curioso. O "espírito mau" que é posto a atazanar o infeliz do homem é: a) um "espírito" que fica junto de Yahweh e b) é um ou o "espírito mau de Deus".
Salvos, portanto, pela Vozes, ainda estamos a caminhar na direção da pergunta - mas que (raios) de espírito mau (desde junto) de Deus é esse?
3 O "espírito mau de Deus" é o "espírito de Deus"
Todas as coisas são descobertas - ou são ainda mais encobertas! - em 1 Sm 16,23. Nesse verso, ocorrem duas referências ao "espírito". Observem-se as performances de tradução da Peregrino (23a - "o mau espírito"; 23b - "o mau espírito"), da Almeida (23a - "o espírito maligno da parte de Deus"; 23b - "o espírito maligno") e da Vozes (23a - "o mau espírito de Deus"; 23b - "o espírito mau"). Como se pode justificar que a expressão hebraica rûaH-'élöhÎm (literalmente, "espírito de 'élöhÎm" ou "espírito de Deus") transforme-se em "mau espírito", "espírito maligno da parte de Deus" ou "espírito mau de Deus"? Estamos diante de traduções controladas não pela técnica? Por que não se pode pôr no papel "espírito de Deus"? Será que se trata do fato de o texto hebraico identifica aquele "mau espírito que ficava junto de Deus" (v. 14) e "mau espírito de Deus" (v. 15 e 16) com o "espírito de Deus" (v. 23a), coisa que o tradutor, por demais comprometido com a teologia e a doutrina, não pode admitir...?
Um caso curioso é a versão da CNBB: 23a - "o espírito deprimente de Deus"; 23b - "o espírito deprimente". Na segunda ocorrência, os tradutores decidiram traduzir härä'â como "deprimente" - logo, "espírito deprimente". Não o faria, mas não vem ao caso agora. Todavia, quando traduzem a primeira expressão, que, já se viu, é, em na língua hebraica, rûaH-'élöhÎm, introduzem na tradução aquele "deprimente" (registrando-o, inclusive, em itálico), chegando ao inusitado "espírito deprimente de Deus". Para todos os efeitos, talvez com exceção de um, o esforço para simplesmente não traduzir o infinitamente gramaticalmente mais simples "espírito de Deus" pelo muitíssimo mais difícil de sustentar "espírito deprimente de Deus" não justifica o engenho4...
Felizmente, a literalidade da expressão se pode flagrar nas demais versões: Jerusalém (23a - "o espírito de Deus"; 23b - "o espírito mau"), TEB (23a - "o espírito de Deus"; 23b - "o espírito maligno") e Pastoral (23a - "o espírito de Deus"; 23b - "o espírito mau"). Não me encontro só, quando olho para a expressão rûaH-'élöhÎm e a traduzo, instantaneamente, como "espírito de Deus" - como, aliás, o faria qualquer estudante de Hebraico Instrumental já no primeiro semestre de curso... Por isso, não posso imaginar uma questão técnica para esses equívocos.
4 1 Sm 16,14-23 como fragmento da teologia pré-persa de um Deus nem bom nem mau, mas, ao mesmo tempo, bom e mau
Assumindo todos os riscos da crítica, e sujeitos a todas as correções possíveis e eventualmente necessárias, proponhamos a tradução literal para as cinco expressões.
Sob meu juízo, nenhuma das versões analisadas está totalmente correta, conquanto algumas traduzam adequadamente um ou outro verso. Caso a caso, pode-se propor o seguinte juízo:
Dadas as razões já discutidas na seção 1, nenhuma das versões poderiam ser seguidas em 1 Sm 16,14 (conquanto alguma atingem, dinamicamente, o sentido mais formal da expressão hebraica). Quando ao v. 15 e 16, a única versão adequada é a Vozes - que, todavia, "peca" no v. 23a. Já que resta dito que todas as demais versões "pecam" nos v. 15 e 16, ressalte-se que, quanto ao 23a, em que a Vozes peca, e com ela "pecam" a Peregrino, a Almeida e a CNBB, "salvam-se" a Jerusalém, a TEB e a Pastoral. Deixo de emitir opinião sobre a tradução que a CNBB "inventou" para o v. 23, utilizando-se da expressão "deprimente".
Ainda que se relevasse a tradução do v. 14 - todas as versões estão sob meu juízo crítico-, confesso que não consigo entender com facilidade (no campo técnico!), essas traduções. A Vozes, que prometia tanto, a única a traduzir adequadamente os v. 15 e 16, por que precisa "pecar" (conscientemente?) no v. 23a? Meus temores, não confessados, de controle teológico - formal ou informal, de terceiros ou da própria consciência, consciente ou inconsciente - fazem algum sentido?
5 Por que o "espírito de Deus" é um "espírito mau"
Além da tradução das expressões delicadas da língua hebraica de 1 Sm 16,14-23, talvez seja necessário apresentar uma explicação para o resultado da leitura que resulta da tradução literal das fórmulas analisadas. Comecemos pela declaração do conteúdo narrativo. Por força de um descontentamento de Yahweh com seu até então ungido, a divindade envia seu espírito (cf. v. 23a - "o espírito de Deus"), que sempre está junto a ele (cf. v. 14 - "espírito mau desde junto de Yahweh") para atormentar o rei. Uma vez que a ação que - dessa vez - o espírito executa pode ser interpretada como má, essa missão do espírito é, por sua vez, também interpretada como uma missão perversa - de sorte que esse mesmo espírito recebe, então, a designação teológico-popular de "espírito mau de Deus" (cf. v. 15 e 16), porque, no fundo, se trata da ação de um "espírito" que age para a desgraça, um espírito de desgraça, um espírito mau (cf. v. 23b - "o espírito mau").
Na narrativa, os termos são equivalentes, e vão se sucedendo à medida que a história avança. É o "espírito mau desde junto de Yahweh" (v. 14), que é o "espírito mau de Deus" (v. 15 e 16), que é o "espírito mau" (v. 23b) que é - sempre foi - "o espírito de Deus". Que se argumente, contra isso, tratar-se, os v. 15 e 16 da declaração teológico-popular: são os sevos a dizê-lo! Não se vá levar em conta discursos do povo, pois o que vale é a alta teologia dos entendidos... Que seja: resta o v. 23, de responsabilidade do próprio narrador - é o narrador, diretamente, quem identifica, sem rodeios, o "espírito mau" e o "espírito de Deus": são uma e a mesma figura.
Do ponto de vista teológico-doutrinário, sempre feito, para usar uma expressão técnica de Simian-Yofre, anacronicamente, compreende-se o desconforto das versões, traduzido, a meu ver, em traduções que não equivalem, nunca, ao texto hebraico - a teologia judaico-cristã de hoje não está pronta para entender como pode o "espírito de Deus" ser, ao mesmo tempo, "o espírito mau de Deus" e "o (próprio) espírito mau". Por outro lado, se está pronta para entender, parece que não está pronta para dizer... Seja como for, não estamos lidando, aqui, com questões teológico-doutrinárias, mas semânticas, filológicas, histórico-críticas. Nesse quadro, não é tarefa difícil compreender como pode o "espírito de Deus" ser, ao mesmo tempo, aquela figura que o leitor moderno, ao deparar-se com ela na passagem de 1 Sm 16,14-23, logo identifica com o... diabo.
5.1 Desconfortos teológicos com a teologia pré-exílica
Antes de ensaiar uma explicação simples para a identidade comum ao "espírito de Deus" e ao "espírito mau", identidade sintetizada na fórmula "espírito mau de Deus", observemos um fenômeno curiosíssimo - quero crer, da mesma característica que o fenômeno que estamos investigando. Trata-se da tradução, nas versões evangélicas, de 1 Re 22,21. Considerando-se as versões nacionais, é absoluto - jamais encontrei exceção, em nenhuma, absolutamente nenhuma versão evangélica. Algumas versões católicas ainda cometem o mesmo equívoco (dificilmente técnico). É tão "universal" o "pecado" que, diante da classe, começo o exercício desafiando os alunos a encontrarem uma versão evangélica qualquer, de qualquer editora, com qualquer "grife", que tenha traduzido corretamente a expressão hebraica - se eles encontram, ou lhes pago algum dinheiro, ou lhes aprovo em todas as disciplinas de quaisquer de meus cursos em todo o resto de nossas vidas... Já apostei um braço!... Não, até hoje nunca encontraram.
Vamos à história. Josafá vai visitar o rei Acabe. Acabe propõe-lhe que ataquem a cidade de Ramot Gil'ad. Para isso, por meio dos profetas cúlticos, consultam a Yahweh. O colégio profético, reunido, endossa os planos do rei - Yahweh dará a vitória! Uma vez - suponho - que conhece o funcionamento da coisa toda (em sua corte, Josafá tem seus próprios profetas!), o rei do sul pergunta se não há alguém mais a ser consultado. Há, um tal de, dependendo das versões, Miquéias, Micaías, Mica, o nome não importa aqui, que, todavia, a crermos em Acabe, é uma espécie de espírito-de-porco: tudo que o rei quiser ouvir, o contrário disso ele o dirá. Josafá insiste que seja chamado, então, e ele o é. Os profetas profissionais vão buscá-lo e o advertem a repetir o discurso já entregue "por Yahweh", o que, num primeiro momento, ele o faz, mas, flagrado pelo rei em gritante farsa retórica, é instado a dizer exatamente o que "vê" de Yahweh.
Nesse ponto, abre-se uma enorme clareia irônica na narrativa. O profeta "espírito-de-porco" diz que vê os céus abertos, Yahweh tendo diante de si seus oficiais e, em celeste reunião, consulta os conselheiros como há de enganar Acabe para que ele ataque Ramot e morra. Diz a narrativa que os conselheiros ficam a debater entre si, sem nenhuma sugestão concreta. Nesse ponto da narrativa, então, uma figura se apresenta e declara a Yahweh que ela pessoalmente há de, para agradar Yahweh, enganar o rei. Feliz com a oferta, Yahweh, todavia, quer saber como - e a figura lhe dá a saber que se fará um espírito de mentira na boca dos profetas do rei, levando-os a mentir a vitória garantida, fazendo com que o rei, enganado, vá ao combate e lá morra, como quer o deus.
O restante da história não tem relevância para o que aqui nos interessa. Interessa-nos a identidade dessa figura. Quem é? A julgar pelas versões - todas até hoje consultadas, sem exceção - evangélicas: "um espírito". A Almeida, por exemplo, traduz assim a cena de entrada dessa figura na narrativa: "então, saiu um espírito, apresentou-se diante do Senhor, e disse: Eu o induzirei" (1 Re 22,21a - itálico meu). "'Um' espírito" - gramaticalmente, indeterminado, um espírito qualquer: teológico-doutrinariamente, não duvido, o "diabo", que me parece ser essa a intenção das versões - fazer essa figura confundir-se com aquela outra equivocada figura, dessa vez no prólogo de Jó. Todavia, essa tradução - "um espírito" - não tem nenhuma, absolutamente nenhuma base no texto hebraico. Após o desafio aos alunos e sua frustração em não conseguirem uma versão adequada (evangélica!), transcrevo no quadro a expressão hebraica que se encontra no "texto sagrado"5. Ela é tão absurdamente simples, que, em uníssono, os alunos e as alunas, que já tenham estudado Hebraico Instrumental, gritam: "o espírito!". De fato: härûaH não pode ser traduzido como "um espírito". O artigo definido o impede severamente6. Trata-se, inapelavelmente, de "o espírito". Tão simples, tão óbvio, porque, todavia, em lugar de traduzir o correto, "o espírito", as versões (evangélicas, todas [que conheço], as católicas, algumas [a Vozes, por exemplo]) adulteram o sentido - traduzem "um espírito"? Arrisco uma resposta - a tradição teológica cristã recebeu o "espírito (de Yahweh)" das tradições veterotestamentárias e o concebeu como o "Espírito Santo"7, uma das pessoas da "Santíssima Trindade", e, como tal, ela não pode mentir (ou "induzir", como, zelosas, querem as versões, depois de, todavia, desconsiderarem, sem zelo, o artigo do texto). Assim, se "o espírito" de 1 Re 22,21 é "o Espírito Santo", e, se "o Espírito Santo" não pode mentir, então aquele espírito não pode ser "o Espírito Santo". Mas o texto hebraico traz "o espírito" - e, só há um! Bem, nesse caso, não será mais, está decidido, "o espírito", mas "um espírito". E eis o resultado - uma figura qualquer há de mentir... Talvez, aquele que certo Jesus de certa passagem do Novo Testamento afirma ser o pai da mentira...
No texto hebraico, todavia, que é o que importa (e só ele), é "o espírito". É "o espírito" - e não "um espírito" - que se apresenta à divindade e oferece seus serviços, digamos assim, sujos, para agrado do rei dos céus. E ele o faz porque é sua tarefa - ele trabalha para a divindade, realiza tarefas, executa ações, age, opera, finaliza. Esse "espírito" de 1 Re 22,21 é aquele mesmo "espírito" de 1 Sm 16,14-23 - e o desconforto incontornável que provocam, um e outro, na comunidade teológico-eclesiástica é tanto que a solução é a corrupção (intencional?) do sentido dos dois textos...
5.2 Como pode o "Espírito de Deus" ser um "espírito mau"?
Não deixaria de arriscar afirmar que estamos diante de narrativas pré-exílicas - quero dizer, pré-persas. Não se chegou, ainda, ao período de transformação da religião selvagem em religião ético-moral, inaugurada, até onde posso controlar a informação, pelo Zoroastrismo persa. Depois do contato com a religião e a cultura persas, os judeus promoverão a transformação radical de sua própria plataforma teológica - de modo que o Judaísmo pós-persa tem quase nada mais do Judaísmo (se se posse usar o termo, penso que não) pré-persa. Sem - aqui - entrar nos detalhes, uma das mais relevantes transformações foi o que gosto de chamar de "castração" da(s) divindade(s). A partir desse período, a divindade não pode mais ser responsabilizada pelo mau, porque será assumido que a divindade é boa. Ecos dessa teologia estarão reverberando como máxima radical no Novo Testamento - "Deus é amor", uma árvore boa não pode dar frutos ruins etc.
Antes dessa transformação ético-moral da religião e das divindades, as representações dos deuses - e de Yahweh - eram "selvagens". O termo não é apropriado, porque elas, no fundo, estavam baseadas numa figura muito "civilizada", já digo. Os deuses, e Yahweh, eram concebidos como quem tem o poder de fazer o que quiser, seja bom, seja mau - é tema, por si só, para outro artigo. Um Yahweh tomado de fúria insana que, arrependido, mata seu povo com o dilúvio, mas é aplacado pelo sacrifício do animal; um Yahweh que, querendo castigar o povo, mas não tenho uma boa desculpa, manda Davi contar o povo e, então, castiga o povo, porque Davi... contou o povo... Um Yahweh que manda seu "espírito" atazanar um homem que, até ontem, era seu escolhido. Um Yahweh que aceita a sugestão do "espírito" de fazer os profetas mentirem, a fim de que a vontade do deus, ver o rei morto, seja satisfeita... Sobram exemplos. Quando, todavia, a força ético-moral tomar conta da plataforma religiosa, esse Yahweh será castrado e, então, entrar-se-á na fase de precisar de uma outra figura para dar conta das desgraças que a vida sempre se encarrega de trazer a todos.
A passagem não foi pacífica: naturalmente representando o esforço da velha teologia "selvagem" [na verdade, "teológico-monárquica"] de evitar sua derrota histórica, Is 45,7 tenta, inutilmente, manter a dignidade selvagem do velho leão: "faço luz, crio treva, faço paz, crio desgraça". "Crio desgraça!" - é o brado de uma divindade que quer manter-se "todo-poderosa", mas está a ver cortados os símbolos - e instrumentos! - de sua virilidade... Um leão, ontem, um gatinho, agora - ainda que na prática. Nomeado no v. 1, terminus ad quem dessa castração e da tentativa (inútil!) de evitá-la, aparece Ciro, o persa. No conjunto, a passagem tenta negociar a rendição de Yahweh aos ditames do Império, sem que Yahweh precise perder suas prerrogativas reais - bravata. Um Yahweh castrado é o que resulta desse encontro.
Se a análise está correta, explica as transformações que a teologia da representação "selvagem" de Yahweh sofreu com o encontro entre Judá e a Pérsia, mas não explica a sua origem. Arrisco uma hipótese. Com uma só narrativa, podemos observar dois modelos - o do deus selvagem e do seu "ordenança".
Davi vê Batseba. Ele a quer. Manda seus homens irem buscá-la. Ele a usa sexualmente e a despede. Ela engravida e faz chegar ao rei a informação. A situação muda de figura. É hora de entrar em cena Joabe. Davi chama Joabe e manda que traga, do campo de batalha, Urias, marido da grávida do rei, para que, deitando-se ele, o marido, com ela, cuide, mais tarde, e cuidem todos, tratar-se o rebento de um filho dele, marido, e não do rei. Joabe executa a ação encomendada. Não dá certo, porque Urias é infinitamente mais nobre do que o rei - não se deita com a mulher, alegando tabu de guerra. O rei, então, mais uma vez, serve-se de seu fiel ordenança - Joabe é instruído a colocar Urias em uma posição de batalha que lhe garantiria a morte. Morto o bom Urias, Davi toma para si a mulher que já tomara.
O quadro me parece adequado como base antropológica para as representações selvagens das divindades - elas eram concebidas a partir dos modelos reais. Yahweh era concebido como um rei, que, ao mesmo tempo, podia, com a direita, zelar pelo povo e, com a esquerda, sulcar-lhe as costas com vergões. Bom e mau, nem bom nem mau - rei. Soberano. Que, todavia, não faz, ele mesmo, o trabalho sujo - desde que não se trata, naturalmente, de deitar-se com uma mulher formosa, atividade não delegável, bem se vê. As demais, enganar o pobre Urias, matá-lo, essas coisas reservam-se aos oficiais e, em maior grau, ao "ordenança", àquele oficial de máxima confiança do rei - se Davi é Yahweh, isto é, nas representações teológico-selvagens, a rigor, teológico-monárquicas, Yahweh comporta-se como um rei, a quem não cabem as avaliações ético-morais, Joabe é "o espírito", isto é, aquela figura concebida ao lado de Yahweh, assim como Davi tem o seu braço direito, para executar as tarefas mais urgentes e relevantes que o rei ordene8.
Assim, não surpreende que Yahweh possa ter sido pensado como bom e mau - os reis eram assim, e os deuses eram assim pensados. De igual forma, não surpreende que o "espírito de(sse) Deus (nem bom nem mau, bom e mau ao mesmo tempo)" também fosse pensado assim, como uma figura a-ética, acima de bem e mal... Se, em lugar de tentar fazer os textos repetirem os conteúdos dos manuais modernos de teologia e catequese, apenas os lêssemos como livros antigos, de antigas teologias, não seria absolutamente tarefa difícil traduzi-los e entendê-los.
6 Dois espíritos diferentes em 1 Sm 16,14-23?
Não posso encerrar o artigo sem enfrentar uma questão crucial para a interpretação apresentada: 1 Sm 16,14 faz referência a dois "espíritos"9? Com efeito, o texto afirma que "o espírito de Yahweh retirou-se de junto de Saul e atormentava-o um espírito mau desde junto de Yahweh"10. Literalmente, sai um e entra outro. São dois? Esta é, por exemplo, a categórica posição de Hur: "nós podemos observar que o 'espírito do Senhor' e o 'espírito mau do Senhor' não podem ser idênticos" (HUR, 2004, p. 40)11. Todavia, é conveniente observar que, linhas adiante, Hur trata de 1 Re 22,21 - e eis como comenta a tradução de härûaH: "a [the] spirit" - a presença do artigo não lhe parece suficiente para ser tão categórico quanto à tradução "o espírito". E devia. Seja como for, no sumário da seção, Hur (2004, p. 41) concluiu que, conquanto seja de identidade distinta do "espírito de Deus", este "espírito mau (de Deus)" não constitui agente contrário à divindade, mas a seus serviços. A questão, todavia, resume-se a decidir-se se há um, dois ou vários "espíritos" nos céus de Yahweh.
Com efeito, não é uma questão fácil de decidir e não tentarei resolvê-la neste artigo. Seja como for, é necessário levantar-se as passagens em que o "espírito" ("de Deus" / "do Senhor") aparece em relação direta com Saul. rûaH yhwh ("espírito de Yahweh" ou "espírito do Senhor") aparece em 1 Sm 10,6. rûaH-'élöhÎm ("espírito de Deus") aparece em 1 Sm 10,10; 11,6; 19,20.23. rûaH-rä'â [më'ët] yhwh ("espírito mau desde junto de Yahweh") aparece em 1 Sm 16,14; 19,9. rûaH-'élöhÎm rä'â ("espírito mau de Deus") aparece em 1 Sm 16,15.16; 18,10. Por um lado, em 1 Sm 10, as expressões rûaH yhwh e rûaH-'élöhÎm são usadas sem distinção: Samuel faz saber a Saul que rûaH yhwh se apossará dele (v. 6) e, quando a narrativa dá conta de que o fato se deu, emprega-se rûaH-'élöhÎm para o descrever (v. 10)12. De outro lado, as duas expressões são igualmente flagradas marcadas pelo qualificativo rä'â - o conjunto das tradições de 1 Samuel conhece tanto um "espírito mau de Yahweh" quanto um "espírito mau de Deus". Se se podem tomar as duas primeiras como intercambiáveis, se se podem tomar as duas últimas também como intercambiáveis, a questão permanece se se podem tomar todas como intercambiáveis - "espírito de Deus", "espírito de Yahweh", "espírito mau de Deus" e "espírito mau de Yahweh" referirem-se, em contextos diversos, à mesma figura teológica.
Um argumento que (salvo melhor juízo) me parece decisivo pode ser elaborado a partir de 1 Sm 16,23. Se, como o quer Hur, o v. 14 fala de "dois espíritos" distintos, ainda que ambos a serviço de Yahweh, mantido esse argumento - expressões diferentes em uma sintaxe que (com efeito) nos inclina a assim interpretá-los-, teríamos, então, que admitir que não se trata de dois, mas de três espíritos, porque, ao lado do "espírito de Yahweh" (rûaH yhwh), no v. 14a, e do "espírito mau desde junto de Yahweh (rûaH-rä'â më'ët yhwh), no v. 14b, flagra-se um "espírito de Deus" ou "de 'élöhÎm" (rûaH-'élöhÎm) no v. 23. Se os dois primeiros - ambos de Yahweh - são dois "espíritos" diferentes, logo, esse outro "espírito", não de Yahweh, mas de 'élöhÎm, não deveria ser tratado como um terceiro...? Todavia, resta - me parece - indiscutível que o "espírito" do v. 23 é o mesmo dos v. 14, 15 e 16. Os termos distintos não são decisivos para se propor distintas identidades para os "espíritos" referidos...
Uma vez, todavia, que não se está diante de uma narrativa unitária, mas resultado de processos de composição e redação13, recorrendo-se à análise do discurso14, talvez, se pudesse tomar a transição de 1 Sm 16,13 para 1 Sm 16,14 como uma pista para investigar a questão. 1 Sm 16,1-13 narra as circunstâncias traditivas da ordem de Deus a Samuel para ungir Davi como rei. Saul, todavia, era rei. 1 Sm 16,13 termina com a declaração de que o "espírito de Yahweh" se apoderou de Davi, recém-ungido com o azeite das legitimações. É a última declaração da passagem. Quando se abre o v. 14, isto é, quando se vai narrar o episódio de Saul atormentado pelo "espírito mau", começa-se justamente dando contas de que o "espírito do Senhor" retirou-se de Saul. Na seqüência, então, "o espírito mau desde junto de Yahweh" inicia seu serviço divinamente encomendado. No conjunto das duas perícopes, o apoderamento de Davi e a retira de Saul por parte do "espírito de Yahweh" funciona como uma dobradiça15 - de um lado, Davi é escolhido e, de outro, Saul é rejeitado - e o "espírito de Yahweh" joga, aí, um jogo de legitimação e de deslegitimação16. Poderíamos tratar 1 Sm 16,14-23 como uma narrativa independente incrustada redacionalmente após a narrativa da unção do "novo" rei, dando conta da deslegitimação do monarca em face da escolha divina?17 Nesse caso, o efeito resulta bastante incoveniente, porque, aproveitando-se uma narrativa de circulação autônoma e tradicional para, com ela, enfeixar-se um argumento histórico-teológico, a emenda não se adapta perfeitamente ao material utilizado.
Em termos teológicos, contudo, estaríamos, ainda, diante de uma personagem - "o espírito", aquele único rûaH que, diferentemente de outros agentes celestes, nunca aparece no plural18. Há vários "mensageiros", há vários 'élöhÎm, mas há apenas um rûaH. Quando esse único rûaH está em missão de paz, é apenas isso - "espírito de Yahweh", "espírito de Deus". Todavia, quando a missão não é de paz, mas de desgraça - e Yahweh era o autor de ambos, conforme a bravata inútil de Is 45,7-, então esse mesmo rûaH não era mais apenas o "espírito de Yahweh" ou o "espírito de Deus", mas, na prática, fazia-se experimentar como "o mau espírito de Yahweh" ou "o mau espírito de Deus".
Conclusão
1 Sm 16,14-23 constitui um fragmento teológico-cultural pré-persa. Dizer isso significa afirmar que a teologia com que se constrói a narrativa atende a concepções pré-exílicas, no contexto das quais a interpretação "moral" da(s) divindade(s) não constituía o modus operandi das práticas e dos conceitos religiosos. As divindades ainda experimentavam uma concepção pré-ética ou a-ética, assumindo atitudes e comportamentos que se poderiam considerar "selvagens". A rigor, trata-se apenas da projeção da corte real - no imaginário político-cultural, os deuses se concebiam como hipóstases dos reis, e a corte celeste era concebida a partir dos modelos gerais e particulares das cortes dos reis. No seu palácio celeste, Yahweh era concebido como rei e, enquanto rei, cercava-se de oficiais especializados para serviços os mais distintos. Dentre eles, uma figura em especial aparece como uma espécie de "ordenança" - x:Wr. No período pré-persa, de modo geral, e em 1 Sl 16,14-23, de modo particular, o papel de ordenança a-ético, isto é, de oficial a serviço do rei e no cumprimento da ordem real, sem sua avaliação crítica, marca a ação narrativa do personagem "espírito de Deus" (v. 23). Nesse caso, depois de, por um tempo, ter servido de homologação real do rei (v. 14a), o "espírito de Yahweh" (= "espírito de Deus") se retira de Saul e, terminada a função legitimadora da monarquia, recebe, ele mesmo, a incumbência de, agora, atormentar o rei, papel que ele cumpre como um bom "pau-mandado". Sob essa nova tarefa, aquele mesmo "espírito de Yahweh" (= "espírito de Deus") é interpretado como, então - e por isso - o "espírito mau de(sde) Deus", espírito que, sendo o "espírito de Deus" (v. 23), e permanecendo sempre junto com Yahweh (v. 14b), realiza agora a tarefa de atormentar o rei e, assim, aparecendo como "o mau espírito de Deus" (v. 15 e 16) ou mesmo já como o "espírito mau" (v. 23). A série de designações desse personagem gravita desde o simples "mau espírito" - flagrado em tarefa de desgraça - até o simples "espírito de Deus", passando pelas nuanças retóricas "espírito mau de Deus" e "espírito mau desde junto de Yahweh".
No conjunto, o comportamento das versões analisadas se revela - sem exceção - carregado de equívocos de tradução. Algumas versões católicas analisadas se comportam de maneira menos equivocada, mas, ainda assim, estão distantes de uma avaliação positiva quanto ao tratamento dos termos hebraicos analisados.
Tanto nas versões quanto nos comentários, flagra-se uma generalizada tendência de distinguir entre os termos relacionados a rûaH em 1 Sm 16,14-23 dois personagens diferentes - o "espírito mau", em si, também tratado como "espírito mau de Deus", e o "espírito de Deus" ou "espírito de Yahweh" - ainda que se trate também o primeiro como uma entidade também a serviço do "poder" divino. Quero crer, todavia, que nem a tradução nem a análise retórica do texto permitem essa conclusão, subordinando o seu recurso a interferências eventualmente extra-exegéticas nas operações de tradução e interpretação da passagem bíblica.
1 Hetzberger (1964, p. 141) traz as por ele assim consideradas "três referências a Satanás" no Antigo Testamento para o contexto da discussão de 1 Sm 16,14. Boa (2004, p. 315) fala de "demônio".
2 Tsumura entende que "espírito mau" não seja uma tradução adequada, e prefere "espírito do mal" ("spirit of evil"). Cf. suas argumentações (TSUMURA, 2007, p. 41-42).
3 Com Hertzberg, por exemplo: "o espírito vem de Yahweh" ("the even spirit comes from Yahweh") (HERTZBERG, 1964, p. 140), ou a fórmula "espírito mau de Yahweh" ("evil spirit from the LORD" (itálicos meus), de Vreeland (VREELAND, 2007, p. 269).
4 E isso a despeito de Preston, que igualmente se serve da estratégia, ao menos em seu comentário à passagem (PRESTON, 1997, p. 122-141). Está-se diante de casos de "naturalização" dos eventos da passagem: a narrativa fala de tormentos "espirituais", os autores decodificam em chave científico-humanista, como, além do citado, Freye (2006, p. 469), que pensa em "melancolia", Fokkelman (1986, p. 140), que fala de "música versus psicose" e Freedman (2010, p. 5), que fala de "esquizofrenia".
5 As aspas na expressão traduzem a desconfiança que tenho de que o texto não seja considerado realmente sagrado pelos tradutores - afinal, que respeito maior haveria em relação a ele do que traduzi-lo adequadamente...? E, no entanto...
6 Isso, contra a opinião de McCarter, que fala em "um certo espírito" ("a certain spirit"), acrescentando a transliteração do texto hebraico - com artigo! (MCCARTER, 1999, p. 320).
7 Por exemplo, Laney (1982, p. 57).
8 Penso que as recepções do "espírito de Yahweh" na forma de - por exemplo - "força divina" ( REVELL, 1996, p. 200), constituam casos de abrandamentos, mas, ainda assim, leituras teológicas anacrônicas: não dão conta das condições da cultura em que os textos foram produzidos, constituindo muito mais uma tentativa de adaptar os textos antigos à "consciência" teológica moderna.
9 Para uma sintética apresentação de postulados de pesquisadores clássicos, cf. Tsumura, 2007, p. 427-433.
10 O que leva à seguinte declaração: "pode Deus enviar maus espíritos também? Naturalmente!" (AMACHREE, 2009, p. 66). Observe-se o plural - "espíritos".
11 Cf., nessa mesma direção, Mark (2009, p. 3).
12 Jobling (1998, p. 90) afirma tratar-se o espírito de 1 Sm 18,10 do mesmo de 1 Sm 16,14-23.
13 Para uma discussão sobre a topografia textual de 1 Sm 16,14-23 na redação final do livro, cf. Rogerson (2006, p. 121-134). Cogita-se, inclusive, de a passagem encontrar-se, hoje, em local distinto da sua original inserção (p. 128). Cf., ainda, Keys (1996, p. 91); Gordon (1993, p. 62); Mackenzie ( 2006, p. 59-70); Campbell (2003, p. 168).
14 Nesse sentido, cf. Bergen (1994, p. 320-335).
15 "O espírito liga estas duas narrativas da seleção de Davi: enquanto o espírito do Senhor elege Davi (16,13), ele abandona Saul" (MAGENNIS, 2011, p. 52). Cf. Van Seters (1981, p. 137-195).
16 Cf., por exemplo, Payne (1982, p. 84); Polzin (1989, p. 155-159).
17 Para Gunn (1989, p. 78), 1 Sm 16,14-23 representa um microcosmo que encerra todo o episódio subseqüente da queda de Saul, até a sua morte.
18 Contra isso, cf. Levison (1997, p. 37-38). Apesar de afirmar que não está sugerindo influência babilônica sobre 1 Sm 16,14-23, Levison cita inscrições que falam de exorcismos em que um bom espírito substitui um mau espírito, de modo que sugere tratar-se do caso. Pelas razões defendidas, não o acompanho na possibilidade sugerida.
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Osvaldo Luiz Ribeiro *
Artigo recebido em 31 de janeiro de 2014 e aprovado em 22 de abril de 2014. * Doutor em Teologia. Professor da Faculdade Unida de Vitória. País de origem: Brasil. E-mail: [email protected].
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Copyright Pontificia Universidade Catolica de Minas Gera, Programa de Posgraduacao em Ciencias da Religiao Apr-Jun 2014
Abstract
The sociohistorical meaning of the expressions rûaH yhwh ("spirit of Yahweh"), rûaH-rä'â më'ët yhwh ("evil spirit from Yahweh"), rûaH-'élöhîm rä'â ("evil spirit of God"), rûaH-'élöhÎm ("spirit of God") and rûaH härä'â ("evil spirit") of and in 1 Sm 16.14-23 is analyzed. The common identity of all these noological characters is postulated. Guided by an exercise of criticism applied to versions of the passage as well as the critical search of samples of international commentaries, rhetoric and the social-historical analysis is applied to the narrative. It is reasoned that, in the text's production horizon, this celestial figure is conceived as the noological equivalent to officials at service of kings, responsible for activities that could be classified as both ethically good and bad, such theological conception correspond to the pre-Persian state of Jewish-Israeli culture. They are not two characters: the "spirit of Yahweh" / "spirit of God" on one side , and the "evil spirit (of Yahweh or God)" on the other, but different descriptions of the same figure in accordance to the action interpreted as carried out by him in the provision of services to the god-king .
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