Resumo
O propósito deste artigo é demonstrar alguns aspectos operacionais da noçâo teórica de "ideologia", tal como pensada pelo marxismo, a fim de enfatizar suas habilidades para uso prático na análise social. O argumento a ser defendido aqui é que, atualizado ou näo com as modas académicas, esse termo ainda funciona desde que compreendido no seu sentido integral. Mostro entäo como a transfiguraçâo do sentido do conceito (do negativo ao positivo) e da realidade que ele descreve (de fenómeno puramente mental para estrutura material), permite entender a prática ideológica como prática social, e como tudo isso vem enredado pela noçâo de "tradiçâo", tal como já pensada por Engels e Marx. Em seguida, enumero alguns pré-requisitos teóricos e metodológicos para produzir um mapa das ideologias de uma formaçâo social. Esse mapa pode servir näo apenas para descrever a topologia de um dado campo ideológico, mas para demonstrar como, quando e por que uma determinada ideologia se torna a ideologia dirigente e o seu discurso, o discurso dominante numa sociedade.
Palavras-chave: ideologia; marxismo; ideologias dirigentes; teoria social; análise social.
The concept of ideology in classical Marxism: a review and an application model
Abstract
The purpose of this essay is to unveil some operational aspects of the theoretical notion of "ideology" as conceived by the Marxist tradition in order to emphasize its usefulness in social analysis. The argument to be defended here is that, either updated or not according to academic fashions, this term still works properly as long as it is understood in its full meaning. I then show how the transfiguration of the concept's meaning (from a negative to a positive sense) and the reality it describes (from a purely mental phenomenon to a material structure) allows us to understand ideological practice as social practice, and how all this comes caught up by the notion of "tradition" as conceived by Marx and Engels. Then, I enumerate some theoretical and methodological requirements to produce a map of ideologies in a particular social formation. This map should serve not only to describe the topology of a given ideological field, but also to demonstrate how, when and why a particular ideology became the official ideology and its discourse, the dominant discourse.
Keywords: ideology, Marxism, ruling ideologies, social theory, social analysis.
Introduçâo
O conceito de ideologia é possivelmente um dos conceitos mais controversos da Ciéncia Social. Abercrombie, Hill e Turner anotaram que "é amplamente aceito que a noçâo de 'ideologia' deu origem a mais dificuldades conceituais e analíticas do que provavelmente qualquer outro termo nas ciências sociais" (1984: 187).
Vinculado originalmente ao marxismo, seu uso foi pouco a pouco desacreditado em nome de noçôes concorrentes como as de "representaçâo coletiva" (Durkheim), "derivaçôes" (Pareto), "hegemonia" (Gramsci), "utopia" (Mannheim) "mito" (Barthes), "discurso" (Pêcheux), "imaginário" (Castoriadis), "mentalidade" (Febvre), "doxa" (Bourdieu), entre muitas outras. Descontadas diferenças puramente políticas que repercutem na atividade intelectual, e que estiveram na base da "superaçâo" do conceito de ideologia, sua recusa foi creditada à variedade e à complexidade do mundo social que aqueles termos substitutivos permitiriam melhor captar. Acrescente-se a esse prodigio dois outros lances. O fato de o conceito de ideologia ser tradicionalmente associado ao marxismo fez com que o seu sucesso científico dependesse diretamente do prestígio académico e da relevância política dessa teoria social. À medida que a importância universitária do marxismo diminuiu nos últimos anos do século XX e nos primeiros do XXI (Soares, 2013), diminuiu também a capacidade heurística da noçâo de ideologia.
Ao lado desse feito cultural contemporáneo, é preciso considerar um segundo acontecimento "ideológico". Periodicamente se decreta a morte ou, no mínimo, "o declínio das ideologias". No final dos anos 1950, Daniel Bell publicou um livro cujo título dispensaria maiores interpretaçôes: The End of Ideology2. Na virada para os anos 1980, os pós-modernos, vivendo eles numa sociedade "pós-industrial" e "pós-classista", decretaram que a nossa época seria também "pós-ideológica" (cf. Lyotard, 1979). O que se postulava é que como näo havia, na realidade, ideologia (o fenómeno social), näo precisava haver o conceito teórico (o referente mental) que o designasse. Paradoxalmente, o uso do termo "ideologia" passou a ser ele mesmo ideológico (Eagleton, 1997).
O propósito deste ensaio é relevar alguns aspectos operacionais da noçâo teórica de ideologia, tal como pensada pelo marxismo, a fim de enfatizar suas habilidades para uso prático na análise social. O argumento a ser defendido aqui é que, atualizado ou näo com as modas académicas, esse termo ainda funciona adequadamente - desde que compreendido na sua significaçâo integral. É essa significaçâo que se pretende restituir.
I.Do falso ao verdadeiro: a trajetória histórica da noçâo de ideologia
a. O conceito de ideologia na teoria social
Bendix anotou que embora diferentes concepçôes de ideologia fossem propostas e desenvolvidas desde que o termo entrou em circulaçâo em principios do século XX, elas nunca deixaram de se referir ao ponto de vista fundamental de Marx sobre o assunto, elaborado em meados do XIX: "as ideias näo podem nem devem ser tomadas pelo seu significado manifesto, mas analisadas em termos das 'forças' [sociais] que estäo por trás delas" (Bendix, 1996: 372).
Embora incompleta, essa interpretaçâo da teoria marxiana da ideologia contribuiu para a necessária politizaçâo do conceito, já que desloca a discussäo sobre "as ideias" do terreno da Epistemologia e da Sociologia da Cultura para o terreno das práticas e dos interesses sociais. O foco da análise deve ser entäo "näo o que uma pessoa diz, mas o motivo por que ela o diz" (Bendix, 1996: 372). Dito de maneira mais difícil e mais exata: a ideologia deve ser pensada como "uma funçâo da relaçâo de uma elocuçâo com seu contexto social" (Eagleton, 1997: 22).
Tendo presente essa premissa, Raymond Williams recomendou que se distinguissem très versees ordinárias do conceito de ideologia: i) ideologia como um sistema de crenças característico de uma determinada classe ou grupo social; ií) ideologia como um sistema ilusório de crenças (ideias falsas ou "falsa consciência", na expressäo inventada por Engels), que pode ser contrastado com o conhecimento verdadeiro ou com o conhecimento científico sobre o mundo social; e iii) ideologia como resultado do processo coletivo de produçao de ideias e significados na vida social (Williams, 1977: 55).
Geuss ponderou que o primeiro item resume aquilo que se poderia chamar de uma definiçâo descritiva do conceito. O termo ideologia pode entäo ser assimilado à "visäo de mundo" (ou, num registro mais politizado, à "consciência de classe"). O segundo item traduz a definiçâo negativa de ideologia e, nessa acepçâo, há duas variantes: a) cognitiva (ligada à veracidade ou falsidade das ideias); e b) política (ideias que, embora "falsas" por si mesmas, ajudam a legitimar e garantir a dominaçâo social). O último item dá um significado positivo ou pragmático à ideia de ideologia e ela pode ser assimilada à noçâo de "cultura" em um sentido muito próximo, mas näo idéntico, ao antropológico: uma maneira de os indivíduos orientarem-se e orientar socialmente suas práticas (Geuss, 1981, apud Eagleton, 1997 p. 49-50; p. 38).
Bobbio (2002) contrapôs uma definiçâo mais neutra e mais operacional à acepçâo negativa do termo e à sua funçâo mistificadora (encontrável tanto em Marx como em Pareto, lembra ele). "Ideologia" poderia entäo significar, também, "um sistema de crenças ou de valores, que é utilizado na luta política para influir no comportamento das massas, para orientá-las em uma direçâo em vez de outra, para obter o consenso, enfim, para instituir a legitimidade do poder". Nesse nivel de generalidade, "uma teoria política qualquer" ou uma doutrina "pode tornar-se ideologia no momento em que vem assumida como programa de açâo de um movimento politico" (Bobbio, 2002: 129). Pense-se aqui, por exemplo, na afinidade entre a teoria do autoritarismo brasileiro (Oliveira Vianna, Francisco Campos, Azevedo Amaral, etc.) e as realizaçôes do regime do Estado Novo3.
A história do conceito de ideologia resumida a seguir demonstra em que ordem cada uma dessas variantes se firmou na escola marxista.
b. O conceito marxista de ideologia
Originalmente, "ideologia" designava, conforme a crença materialista, apenas aquilo que sua etimologia indicava: uma ciência das ideias ou o estudo científico das ideias (ide(o)- + -logia). Por oposiçâo à metafísica, Destutt de Tracy argumentou, em fins do XVIII, em Eleménts d'idéologie, que ideias procediam das percepçôes sensoriais do mundo exterior, e näo de raciocínios a priori, sendo elas, portanto, resultado da interaçâo entre "organismos vivos" (os agentes sociais) e o "meio ambiente" (o mundo social). Pouco depois, quatro outros significados bastante diferentes desse primeiro surgiram e emprestaram ao termo uma conotaçâo crítica e negativa que o acompanharia até hoje.
Bonaparte reprovou a atividade política dos "ideólogos" e registrou que a açâo reformadora do círculo de colaboradores do Institut Nationale (do qual fazia parte de Tracy), inspirada nos ideais do Iluminismo, consistia, de fato, na capacidade para manipular as ideias para edificar "um governo de homens sanguinários" (apud Thompson, 1995: 47). Ideologia tornou-se entäo, pelas mäos de Napoleäo, um corpus de idéias flexível e adaptável que se prestaria a toda sorte de manipulaçâo política. Como essa má doutrina estava em desacordo com o sentimento dos homens e as liçôes da História, tal como o Imperador os concebia, "ideologia" passou também a nomear toda teoria abstrata, imaginativa, irrealizável na prática, num sentido muito próximo daquele dado por Gramsci à noçâo de "ideologias arbitrárias", por oposiçâo a "ideologias historicamente orgánicas" (Gramsci, 1977: 1.456).
Na corrente marxista clássica, o termo ideologia foi mais frequente nos textos de polémica política e filosófica do que no discurso teórico propriamente dito. Ele seria utilizado por Engels e Marx para qualificar pensamentos e doutrinas tomados enquanto entidades puras, independentes da realidade material, isto é, enquanto juízos puramente especulativos, tais como os sistemas de filosofia e religiäo. Esses sistemas teriam produzido até entäo "ideias falsas" sobre os homens (Marx e Engels, 1982: 1.049). Num dos exemplos escolhidos pelos autores, é como se o mundo social real, ignorado pelos teóricos profissionais, pudesse ser reduzido, graças à açâo dessas fabulaçôes ideológicas, a uma batalha imaginária de "frases contra frases" (Marx e Engels, 1982: 1.054), onde as ideias e os conceitos seriam, graças a seu poder mágico, os verdadeiros princípios determinantes da realidade. Engels, bem mais adiante, agregou outro significado à noçâo de ideologia sem refutar esse primeiro. Ideologia passou a compreender também todos os motivos, falsos ou aparentes, todas as concepçôes ilusórias que concorriam para ocultar do próprio agente social suas condiçôes de existência e as contradiçôes sociais em que estava enredado. Daí ideologia passar a ser sinónimo, também, de "falsa consciência" (Engels, 1979b, vol. 3: 293).
No século XX a palavra conservou, na língua comum, aquela acepçâo dicionarizada e neutra de "conjunto de convicçôes filosóficas, sociais, políticas etc. de um indivíduo ou grupo de indivíduos" (Dicionário Houaiss), mas também o termo ainda segue designando qualquer pensamento doutrinário, sectário, parcial, absoluto, dogmático- e, portanto, defeituoso - sobre o mundo. Paralelamente, o conceito desprendeu-se daquela faculdade quase natural que o impelia a nomear um conhecimento errado do mundo social, seja como filosofia especulativa (Marx e Engels), seja como consciência social falsificada (Engels) e assumiu, para os marxistas, um sentido mais descritivo (Lênin) e mais explicativo (Gramsci). Mas, em todo caso, menos pejorativo. Para Lênin, ideologia tornou-se a forma de consciência política das classes sociais ("consciência de classe"); para Gramsci, a consciência teórica ou subjetiva dos processos sociais.
Em Lênin, 'ideología' é o sistema ou conjunto de ideias, principalmente políticas, produto de um grupo ou classe social, que, através desse sistema, representa, manifesta, justifica e racionaliza seus interesses. Daí sua fraseologia característica: "ideologia proletária", "ideologia burguesa", "ideologia pequeno-burguesa", etc. Já em Gramsci, ideologia indica a totalidade das formas de consciência social ou, de maneira mais direta, visôes e concepçôes de mundo dominantes transformadas em "senso comum", e que concorrem para a coesäo ("cimento") social. Por ordem de complexidade, säo elas: filosofia, religiäo, senso comum e folclore (cf. Williams, 2007: 212-217; Larrain, 1988: 183-187). Assim, as ideologias (no plural) funcionam, na teoria de Gramsci, como forças organizadoras e näo como concepçôes intelectuais que podem ser verdadeiras ou falsas por si mesmas. Säo elas que, no limite, circunscrevem o espaço social onde os agentes "atuam, lutam e adquirem consciência de suas posiçôes sociais" (Eagleton, 1997: 109).
Nesse sentido, o termo "ideologia" passa a designar näo mais, ou näo somente, uma figuraçâo irreal do mundo social (na linguagem dos marxistas, figuraçâo irreal das relaçôes de exploraçâo económica) ou mesmo especulaçâo arbitrária ("filosofia", na direçâo dada ao termo na Ideologia alema). Ideologia se torna uma sorte de autoconsciência de classe, consciência essa capaz de aglutinar interesses, definir padrôes de comportamento coletivo e de funcionar como um princípio gerador da congruência social.
Esse percurso, aqui resumido, permiteentäo rever a concepçâo materialista de ideologia, näo só intuindo a complexidade do problema na filosofia de Marx e dos marxistas, mas a complicaçäo e o interesse do problema em si mesmo. Explico esses pontos todos na próxima seçäo, pois me parecem especialmente úteis para aqueles ainda interessados no seu emprego prático na análise social.
II.O duende de Engels e o poder social das ideias
Depois da virada de sentido da noçäo de ideologia em Lênin e em Gramsci, ainda na primeira metade do século XX, o novo conceito impós ao marxismo uma reinterpretaçäo da re^äo entre a estrutura económica da sociedade (relaçôes de propriedade, formas de prod^äo, tecnologias, etc.) e as ideias provenientes das superestruturas culturais, já que essas últimas näo poderiam ser definidas mais como meras derivaçôes da primeira. Foram dois os principios teóricos redescobertos ou reinterpretados para admitir, a partir de entäo, a funçao positiva da ideologia: i) o mundo social deve ser pensado in totum, e nao mais a partir das relaçoes, das mediaçoes ou das oposiçoes entre seus níveis (conforme o esquema simplificado que justapöe base+ superestrutura); e ii) as estruturas ou níveis do todo social têm eficácia própria, isto é, poder para produzir efeitos reais.
É assim que já nos anos 1930 Gramsci e depois na sua linha Raymond Williams, nos anos 1970, irao vindicar para uma teoria materialista da ideologia (termo que preferem abandonar, substituindo-o por "hegemonia", no primeiro caso, e "cultura", no segundo) o estatuto do ideológico como criador e produtor da realidade social e nao como instância reprodutora de significados e valores dominantes, simplesmente.
A intuiçao original dessa ideia pode ser lida já no próprio Marx e também em Engels. Segundo a interpretaçao de Gramsci,
a proposiçao contida na Introduçao [no Prefácio] de Para a crítica da Economia Política, que os homens tomam consciência dos conflitos estruturais [ou seja, dos conflitos fundamentais de uma sociedade] no terreno das ideologias, deve ser considerada como uma afirmaçao do valor gnosiológico e nao puramente psicológico e moral das concepçoes de mundo (Gramsci, 1978: 57; grifado no original; acréscimos entre colchetes meus).
Voltarei a esse ponto (o valor gnosiológico das ideologias) adiante. Por ora quero considerar rapidamente a fonte dessa ideia a partir da sugestao do autor dos Quaderni.
Ideologia(s) deve(m) ser vista(s) nao como "ideias", mas como "formas ideológicas". O que isso significa e qual a importância dessa variaçao que nao é meramente terminológica?
No Prefácio da Crítica da Economia Política de 1859 lê-se que:
A mudança da base económica [de uma sociedade] é acompanhada de uma transformaçao mais ou menos rápida em todo este enorme edificio [social]. Quando se considera essas transformaçoes, é preciso sempre distinguir duas ordens de coisas. Há a transformaçao material das condiçoes de produçao económica. Pode-se constatá-la conforme o espirito rigoroso das ciências naturais. Mas há também as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas, filosóficas, em suma as formas ideológicas, pelas quais os homens tomam consciência desse conflito e o conduzem até o fim (Marx, 1965: 273; grifos meus).
A traduçao possível dessa noçao de "formas ideológicas" a fim de torná-la operacional poderia bem ser: sistemas de crenças históricamente determinados; ou visoes de mundo inerentes aos agentes e grupos sociais; simbolismos políticos; ou ainda tradiçôes culturáis. A expressâo "tradiçâo" é uma boa chave de leitura para decifrar essa tripla mudança de interpretaçâo: i) do sentido do conceito de ideologia (de inconsciência individual para consciência social), ii) do valor do conceito (de negativo para positivo) e iii) do dominio da ideologia (das representaçôes para os comportamentos).
A conhecida passagem de Marx que abre o seu 18 Brumário- "A tradiçâo de todas as geraçôes mortas pesa como um pesadelo sobre o cérebro dos vivos" (Marx, 1994: 437) - é certamente uma antecipaçâo e um exemplo da concepçâo de ideologia referida por Gramsci e presente no Prefácio da Crítica da Economia Política. Essa passagem já sugere sua assimilaçâo nâo à ideia arquitetônica do todo social e dos seus espaços característicos - infraestrutura e superestrutura - onde residiria a ideologia, nem à concepçâo puramente filosófica que opöe a "consciência social" falsificada ao "ser social" real. O que está em jogo aqui, e que será desenvolvido em todo o livro sobre o golpe de Estado de 1852, é muito mais um juízo sociológico sobre o valor prático e a eficácia social das ideias. Voltarei a esse ponto logo adiante a fim de aprofundar a análise da noçâo de "tradiçâo" como ideologia.
O último Engels retomou a questâo do papel da ideologia e da configuraçâo do campo ideológico quase da mesma maneira e nos mesmos termos pensados por Marx na década de 1850, expondo mais explicitamente, porém, as duas variáveis fundamentais dessa equaçâo. Ele destacou o problema de um espaço próprio para as ideias e levantou a questâo de sua eficácia social em termos mais evidentes, ainda que de maneira metafórica.
Em Engels, as ideologias políticas, tal como se manifestam em disputas a princípio muito abstratas ou retóricas entre "regimes de governo" (democracia, aristocracia, monarquia), deixam de ser "apenas as formas ilusórias" onde se desenvolvem as lutas efetivas entre as classes (Marx e Engels, 1982: 1.064), para tornarem-se modos efetivos de percepçao social (esse é,afinal,o aspecto gnosiológico da expressâo "pelas quais os homens tomam consciência" etc. notado por Gramsci) e o lugar onde sâo travadas e em torno dos quais sâo travadas as lutas sociais.
No processo histórico, Engels argumentou, as "formas políticas" que as lutas de classes assumem (Constituées, códigos jurídicos, sistemas políticos, teorias políticas, doutrinas filosóficas, etc.), essas cristalizaçôes da "consciência social", sâo fatores senâo determinantes, preponderantes para o andamento e para o entendimento do mundo social (Engels, 1979a, vol. 3: 284). A fim de completar a ideia, Engels também escreveu que "as condiçôes políticas e mesmo a tradiçâo" ideológica, ou seja, as configuraçoes da consciência social "que perambulam como um duende no cérebro dos homens, também desempenham seu papel" condicionante na prática social (Engels 1979a, vol. 3: 284 e 285)4.
Tomemos mais detidamente a noçao de "tradiçao". A expressäo, tal como aparece em Marx, parece útil para destacar o novo valor e a nova utilidade do conceito de ideologia nos clássicos do marxismo.
As passagens do 18 Brumário comentadas a seguir sao mais sugestivas que explicativas desse problema e embora nao valham, naturalmente, por uma teoria completa da ideologia, funcionam para ilustrar o sentido ativo das ideias (mas nao seu papel independente e sua irredutibilidade ao social, diferença essencial nesse sistema de pensamento).
No esboço de análise da formaçao ideológica na França de meados do XIX, Marx destacouem seu comentário sobre vitória de Luís Bonaparte nas eleiçôes presidenciais a funçao política da memória social:
A tradiçâo histórica fez nascer nos camponeses franceses a crença no milagre de que um homem chamado Napoleao restituiria a eles toda a glória. E surgiu um individuo que se faz passar por esse homem porque carrega o nome de Napoleao. [...] A ideia fixa do sobrinho [de tomar para si todo o poder político] realizou-se porque ela coincidia com a ideia fixa da classe mais numerosa da França (Marx, 1994: 533; grifos meus).
Nessa passagem, "ideia fixa" na segunda mençao a ela é a expressao substitutiva da palavra "ideologia". O peso da tradiçâo ou as formas históricas da consciência social - o "duende" de Engels, para recordar a metáfora - terminaram por criar uma disposiçao subjetiva indestrutível na classe dos camponeses, cujo efeito prático consistiu em trocar, nas eleiçôes de 1850, o sobrinho pelo tio, ou mais propriamente, o sobrinho-candidato pela imagem mitificada do tio, o Imperador de todos os franceses.
É certo que a relaçao entre a realidade política (Luís Napoleao) e a representaçao dessa realidade (Napoleao Bonaparte) se realiza de maneira complexa. Toda a terminologia empregada por Marx nesse livro para designar as ideias e sua funçao política como ideologias conservadoras ou transformadoras - 'frases', 'palavras de ordem', 'linguagens', 'idioma', 'trajes', 'máscara', 'tradiçôes', 'ilusöes', etc. - é sintomática de um novo problema pensado num novo registro: como interpelar, de um ponto de vista materialista, o simbolismo político, as ideologías, a tradiçâo, enfim, e seu papel ativo na traduçâo dos interesses sociais através da sua linguagem própria?
Um dos primeiros problemas teóricos que derivam da análise histórica de Marx da II República na França é o problema da representaçâo ideológica da realidade através dos simbolismos políticos. Ele é um meio possível para entendero simbolismo como ideologia e sua funçâo social.
No quadro a seguir selecionei algumas passagens da primeira seçâo de O 18 Brumário de Marx a fim de enfatizar duas ideias correlatas: o papel do simbolismo político como ideologia e suas duas funçôes sociais, transformadora e conservadora. Todas as frases säo literais.
Como se vê, o mundo das ideias - o ideológico, em sentido lato- nao é simplesmente uma forma mistificadora da realidade social. Ainda que "a linguagem, as paixöes e as ilusöes" possam cumprir essa funçao de "máscara" ou disfarce ("trajes"), escondendo dos próprios protagonistas o conteúdo real, ou os objetivos históricos, das suas batalhas, há mesmo uma dimensäo positiva dos simbolismos políticos. Os "ideais e as formas de arte, as ilusöes", ainda que falsos em si mesmos, quando confrontados com a realidade, säo essenciais para "manterem" o "entusiasmo" dos protagonistas do drama "no alto nivel da grande tragédia histórica". Talvez por isso mesmo, uma das tarefas da revoluçâo social anticapitalista seja produzir uma nova "ideologia", isto é, um novo simbolismo que rompa com as antigas referências heroicas da revoluçâo burguesa, essa "veneraçâo supersticiosa do passado".
Por outro lado, a funçao conservadora dos simbolismos ideológicos näo pode ser menosprezada. A projeçâo da figura heroica do tio na figura farsesca do sobrinho, uma paródia no sentido próprio do termo, sucedida por outras tantas ("Caussidière por Danton, Louis Blanc por Robespierre", etc.), só pode se realizar plenamente porque o real se "disfarça" e se "oculta" sob essas projeçôes mistificadoras. Essa é a senha para voltar a História para trás: näo há "sombra de dúvida quanto ao retrocesso" político que o golpe de estado de dezembro de 1851 representou, näo há sombra de dúvida quanto à derrota social que o fracasso dos socialistas e socialdemocratas 1848 representou. A partir de entäo, toda a simbologia revolucionária - o arremedo da Roma Antiga e a imitaçâo da Revoluçâo de 1789 - podem desaparecer e serem substituidas por outra formaçâo ideológica, sintonizada com o espirito do capitalismo ("Locke suplantou Habacuc").
O que é, entäo, a ideologia para os clássicos do marxismo?
A ideologia é uma estrutura e uma prática. A ideologia näo é um estado subjetivo da consciência (imaginaçäo), nem um produto derivado de outras instâncias (um mero "efeito", como na expressäo consagrada por Poulantzas (1971)), mas uma estrutura do mundo social (uma "realidade"). E a expressäo "estrutura ideológica" designa o terreno onde certas práticas sociais simbólicas se däo. O fundamental é que essas práticas têm ai a mesma materialidade que as açôes e os conflitos nos demais dominios do mundo social. E é através da ideologia (ou das "formas ideológicas" para falar como Marx, ou da "trad^äo", para falar como Marx e Engels) que os agentes sociais conhecem e se reconhecem (onde os homens "tomam consciência desses conflitos" etc.), isto é, situam-se em re^äo ao espaço social, e situam os outros agentes no espaço social. Dai o seu sentido positivo e produtivo e o seu "valor gnosiológico", como enfatizou Gramsci, na mesma linha dessa passagem de Marx: "E nas tradiçôes classicamente austeras da república romana, seus gladiadores encontraram os ideais e as formas de arte, as ilusöes de que necessitavam para esconderem de si próprios as limitaçôes burguesas do conteúdo de suas lutas e manterem seu entusiasmo no alto nivel da grande tragédia histórica" (Marx, 1994: 439).
A ideologia é assim uma visâo ou uma concepçâo social específica do mundo social, nem falsa, nem verdadeira em si mesma, isto é, correspondente ou näo aos fatos da realidade objetiva, ainda que sua gramática, sua forma de arranjar as ideias, possa conter elementos falsos ou elementos verdadeiros, constataçôes de fato e juízos de valor. A medida para julgar as tradiçôes ideológicas passa entäo a ser funcional, e näo psicológica (já que se trata de um fenómeno social, näo individual) e menos ainda intelectual (concepçôes certas ou erradas em si mesmas). Ou a ideologia é eficaz - como instância de produçâo, reproduçâo e transformaçâo da vida social - ou näo é. Nunca pode ser, portanto, uma ideia fora do lugar. Daí a funçâo transformadora ou conservadora dos simbolismos ideológicos, como referido no 18 Brumário de Marx.
III.As tradiçôes ideológicas e seus mecanismos sociais
Nesse nivel de abstraçâo, como entäo conceber e explicar as tradiçôes ideológicas? Quais säo seus suportes? Qual é sua funçâo social? Como elas operam? Por quais mecanismos - materiais, sociais e simbólicos - elas atuam?
Mesmo se ficarmos numa definiçâo genérica dos efeitos das tradiçôes ideológicas dominantes, deveria ser possível listar ao menos sete manifestaçôes desse fenómeno social e associar a ele outras tantas funçôes ligadas a questôes relativas a conflitos de interesses e a disputas pelo poder político numa formaçâo social.
Entendidas como um conjunto de significados e valores que colaboram com ou legitimam a dominaçâo social, as formas ou tradiçôes ideológicas podem aparecer como: práticas significantes e processos simbólicos (num sentido muito próximo à ideia de "cultura"); ideias e crenças de uma classe ou grupo social (uma visäo de mundo); um campo discursivo onde poderes sociais relevantes se enfrentam (através da retórica política); concepçôes ou suposiçôes falsas e/ou distorcidas da realidade social (um discurso "ideológico" propriamente dito); um ideário, um pensamento organizado, como säo os sistemas teóricos especulativos (isto é, uma doutrina); idiomas específicos com léxico próprio ("linguagens" sociais); palavras de ordem, slogans, lugares-comuns.
As tradiçôes ideológicas, assim concebidas, podem, conforme Eagleton, unificar grupos ou classes, promovendo sua identidade social e/ou sua solidariedade política; orientar a açâo política, providenciando a seus partidários motivos e também objetivos; promover interesses políticos relevantes em face de preferências opostas; racionalizar ou oferecer explicaçôes e justificaçôes logicamente coerentes para interesses ou comportamentos sociais controversos; unlversalizar, em nome de "conceitos dominantes" (a expressâo é de Marx e Engels), interesses particulares (de época, lugar, classe) como interesses comuns a fim de torná-los socialmente aceitáveis; e naturalizar crenças e valores específicos, convertendo-os em senso comum, em realidades inevitáveis, em verdades anónimas e universais5.
Em meio a essa extensa lista de funçôes das "formas ideológicas" (Marx), tomemos dois pontos que quase nunca aparecem para ilustrar e ampliar essa discussäo.
Normalmente, análises do funcionamento concreto e das operaçôes teóricas da ideologia estäo vinculadas a duas operaçôes padräo desse fenómeno social: sua capacidade de ocultar interesses e sua propriedade para universalizar valores específicos. Quero destacar, contudo, dois outros fenómenos. Eles estäo ligados: i) à capacidade unificadora da ideologia dominante (portanto, à sua funçao política); e ii) à própria unidade de uma ideologia politicamente dominante para realizar essa funçâo, (portanto, à sua natureza específica, sua morfologia como retórica, discurso, doutrina, linguagem etc.). Essa unidade do discurso político-ideológico implica outros dois problemas: (a) sua uniformidade interna (isto é, sua lógica como sistema simbólico, como uma "tradiçâo"); e (b) sua predominância numa formaçâo social onde competem outras ideologias políticas para se firmarem como universais (isto é, sua supremacia ou "hegemonia"). É sempre preciso explicitar a complexidade da topologia de um dado campo ideológico, seja porque o poder da ideologia política dominante para unificar discursos e práticas sociais nunca pode ser suposto antecipadamente (como um pressuposto da noçâo de ideologia), seja porque sua coerência interna é um objetivo a ser alcançado, näo um ponto de partida. Voltarei a esse aspecto mais adiante.
Näo é exagerado desconfiar que quanto mais uniforme, maior deve ser sua primazia e quanto mais favorita é uma ideologia, maior sua competência para impor e soldar interesses de todo tipo (de grupo, de classe etc.). Mesmo o problema da funçâo agregadora da ideologia pode ser pensado a partir de duas perspectivas: (a) a da coesao social, onde é mais conveniente manter a expressäo "ideologia dominante"; e (b) da integraçao moral, da unidade psicológica, enfim, da solidariedade dos grupos sociais. No caso da solidariedade entre grupos de elite, para marcar a diferença, seria mais conveniente dizer "ideologia dirigente". Logo, para efeito de análise, é útil distinguir a funçâo da ideologia que decorre de uma perspectiva mais estrutural - a reproduçâo social - da funçâo que decorre de uma perspectiva mais histórica - por exemplo, a unificaçâo política das classes dirigentes. Se a expressâo "ideologia burguesa" recobre ainda que de modo inespecífico a demanda da reproduçâo social, é preciso atentar para a existência de uma série de ideologias particulares (económicas, políticas, jurídicas, morais, estéticas, teóricas, etc.) que entram em questâo quando se pensa no problema da unidade da classe dirigente e na garantia da sua supremacia social6.
É possível supor que os mesmos mecanismos ideológicos ou técnicas de "construçâo simbólica" (Thompson, 1995), referidos acima, tais como racionalizaçâo, universalizaçâo, dissimulaçâo, naturalizaçâo, etc., atuem tanto nos processos de dominaçâo social quanto nos processos de unificaçâo das classes dirigentes, mas esses mecanismos nâo mobilizam necessariamente nem os mesmos elementos ideológicos, nem a mesma maneira de combiná-los. Isso porque há uma diferença e uma desproporçâo entre as ideologias economicamente dominantes (ou ideologias "globais") e as várias ideologias politicamente dirigentes7. Depois porque uma e outra nunca sâo uniformes (isto é, sem contradiçôes internas), unitárias (isto é, plenas, acabadas, "totais") e homogéneas (sem camadas diferentes ou ainda que com camadas dessemelhantes, perfeitamente sobrepostas ou hierarquizadas). Sempre podem ocorrer empréstimos entre visöes de mundo distintas, ainda que seus discursos, linguagens ou doutrinas possam se definir como "anti" isso ou aquilo. Como resumiu Terry Eagleton,
As ideologias säo, de modo geral, formaçoes diferenciadas, complexas internamente, com conflitos entre seus vários elementos que precisam ser continuamente renegociados e resolvidos. [...] Se as ideologias näo säo täo 'puras' e unitárias quanto elas próprias gostariam de acreditar, isso ocorre porque, em parte, existem somente em relaçao a outras ideologias. [...] Martin Seliger [...] argumenta que as ideologias säo, tipicamente, misturas de enunciados analíticos e descritivos, de um lado, e prescriçoes morais e técnicas, de outro [...]. Estudar uma formaçâo ideológica é, portanto, entre outras coisas, examinar o complexo conjunto de ligaçoes ou mediaçoes entre seus níveis mais e menos articulados (Eagleton, 1997: 51, 53 e 55; grifos meus)8.
No mesmo sentido, o universo ideológico onde elas se movem, nascem e morrem é um universo bastante complexo, hierarquizado, desigual e contraditório. Como Williams (1977) argumentou, há aí, ao mesmo tempo, "formas de consciência" dominantes, ideias históricamente residuais e formaçoes ideológicas emergentes. Assim, nesse espaço social podem conviver diversas ideologias políticas (como no Brasil nos anos 1930, por exemplo: liberalismo, autoritarismo, corporativismo). Elas säo produzidas e garantidas por aparelhos ou instituiçoes diferentes (partidos, sindicatos, movimentos, organizaçoes e mesmo o próprio Estado), e säo, em geral, elaboradas e difundidas por uma intelligentsia. Frequentemente há uma hierarquia instável entre as ideologias e entre os produtores de ideologias (os intelectuais), uma vez que a disputa nesse mundo näo se dá somente em torno de conteúdos e proposiçoes livrescas, mas em torno de posiçoes de poder efetivo. As relaçoes políticas nesse dominio, tanto entre ideias como entre ideólogos, poderiam ser descritas como relaçoes de colaboraçâo, convergência, concorrência, conflito etc. Ou por analogia com as relaçoes da teoriados conjuntos: inclusäo, reuniäo, interseçâo, diferença, complemento, equivalência e todas aquelas propriedades que decorrem delas.
Williams recomendou ainda que toda análise histórica das formaçoes e das tradiçoes ideológicas deveria procurar apreender as relaçoes dinámicas no interior dos "processos culturais", isto é, dos processos de produçâo de práticas e experiências culturáis, significados e valores simbólicos, näo em termos de fases e etapas, ou de variaçôes evolutivas de uma cultura ou ideologia dominante segundo o esquema de primeiro isso, depois aquilo. Mas como uma "inter-relaçâo dinámica de elementos variáveis e variados históricamente em cada ponto desses processos", onde sempre se enfrentam e se chocam "movimentos e tendências" culturais, noçôes, formaçôes e concepçôes diferentes, cada uma com um grau específico de eficácia social (1977, p. 121-122).
Esses seriam assim alguns dos pré-requisitos teóricos e metodológicos - um modelo de aplicaçâo, por assim dizer - para produzir um mapa das ideologias de uma formaçâo social específica num período determinado do seu desenvolvimento histórico. Esse mapa deveria näo apenas descrever a topologia de um dado campo ideológico, suas hierarquias e subordinaçôes, mas demonstrar como, quando e por que uma dada forma ideológicase tornou a ideologia dirigentee o seu discurso,o dominante.
Conclusöes
Na primeira parte deste ensaio fiz um relato da gênese e da trajetória do conceito de ideologia no pensamento social. Ele foi útil näo só para expor os diferentes sentidos que o termo adquiriu, mas para datar suas sucessivas torçôes de significado. Em seguida, procurei demonstrar que, mesmo para os clássicos do marxismo, "ideologia" é uma noçâo teórica que deveria ser entendida de maneira mais exigente do que pretendem os resumos usuais sobre esse assunto. Processos ideológicos säo processos de formaçâo da realidade e näo meras projeçôes imperfeitas ("efeitos invertidos") ou erradas ("falsas") do mundo social. Poderíamos chamar esse sentido do conceito de ideologia de performativo. Esses processos podem ser mais que mediaçôes enganadoras ("máscaras") entre a consciência dos agentes e o mundo social, ainda que se possa encontrar a confirmaçâo de todas essas acepçôes nos próprios Marx e Engels, já que foram mudando seu entendimento ao longo do tempo e, assim, sobre o que "ideologia", termo pouco frequente depois de A ideologia alema, deveria designar. O quadro construido com algumas passagens de O 18 Brumário de Luís Bonaparte sobre a representaçâo ideológica da realidade através dos vários simbolismos políticos mobilizados na Revoluçâo de 1848 (os romanos, os revolucionários franceses, Napoleäo, etc.), funciona para ilustrar como todas essas significaçôes convivem para descrever, de modo complexo, uma realidade simbólica complexa.
Nesse contexto, a virada mais importante, como sublinhei, foi a transfiguraçao, operada nessa corrente intelectual, da valência do conceito de ideología (do negativo ao positivo) e da realidade que ele deve descrever (de fenômeno puramente mental para "estrutura material"), já que essa nova acepçao permite entender a prática ideológica como prática social, e näo como um fenómeno da consciência. Ele deve muito a Gramsci. A ideologia é um mecanismo de sujeiçao social ("reproduçao") que precisa recorrer a instituiçôes específicas ou, na sua linguagem, a "aparelhos". A ideologia somente existe como força social através dos "aparelhos ideológicos de Estado". O famoso ensaio de Althusser (1976) estabeleceu que o sistema escolar, o sistema jurídico, o sistema político, as religiöes, a familia e a escola sao instituiçôes cuja funçao é rotinizar valores e ideias dominantes, definindo as práticas dos agentes sociais como práticas destinadas à reiteraçao das relaçôes de dominaçao em dada sociedade.
Propus entao neste texto que essas operaçôes semánticas poderiam ser apreendidas pela noçao, bastante plástica e operacional, de "tradiçao", tal como já pensada por Engels e Marx e sempre referida de modo alusivo e incidental. Todavia, a "tradiçao [...] que perambula como um duende no cérebro dos homens", como dirá Engels, sintetiza várias propriedades importantes do conceito de ideologia. Quando Marx escreve que "A tradiçao histórica fez nascer nos camponeses franceses a crença no milagre de que um homem chamado Napoleao restituiria a eles toda a glória", ele está indicando que esse fenómeno da percepçao ideológica possui um valor tanto negativo quanto positivo (performativo), que ele ultrapassa a inconsciência individual para transformar-se em consciência social (uma tradiçao compartilhada), e que supera o domínio puro das representaçôes simbólicas para definir os comportamentos políticos.
Por último, procurei estabelecer alguns parámetros gerais para analisar as operaçôes da ideologia - das "formas ideológicas" - a partir de dois aspectos que me parecem fundamentais para entender a dimensao política das ideologias políticas: seu papel unificador e sua unidade interna.
Tradiçôes ideológicas cumprem duas funçôes básicas: ocultar interesses específicos (de classe, de grupo, de categorias sociais, etc.) e universalizar ideias particulares. O que eu procurei ressaltar nesse ensaio é que isso depende da capacidade da ideologia dominante de unificar interesses em disputa; e que essa capacidade depende, por sua vez, da própria unidade da ideologia dominante para realizar essa funçao em uma dada sociedade. Todavia, a própria "unidade da ideologia dominante" deve supor sua uniformidade interna (isto é, sua relativa coerência como sistema simbólico) e seu poder para se impor como a forma ideológica hegemônica numa sociedade onde competem várias ideologías, tradiçôes, concepçôes, visöes de mundo. Esse problema é tanto mais complexo quando se considera a existência, ao mesmo tempo, de uma ideología dominante, isto é, de uma ideologia cuja funçâo é a integraçâo global de uma dada sociedade ("coesâo social"), e de uma ideologia dirigente, uma formaçâo de ideias cuja funçâo é garantir a solidariedade entre grupos de elite ("unidade política"). Cada uma delas nâo mobiliza nem os mesmos elementos simbólicos, nem a mesma maneira de combiná-los. Para retomar a sugestâo de Marx na sua análise sobre o período 1848-1951, é como se a veneraçâo à figura de Napoleâo cumprisse a primeira funçâo (uniâo da sociedade francesa em torno de uma ideia-força mítica) e a evocaçâo da grande Revoluçâo, a segunda funçâo: soldar ideologicamente as classes dirigentes. É nesse sentido que pode ser lida a frase de Marx: "a Revoluçâo de 1848 nâo soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradiçâo revolucionária de 1793-1795" (Marx, 1994: 438).
2Esse livro é bem mais complexo e as questöes que ele coloca bem mais sugestivas do que seu título sugere. E o resumo que ele contém da teoria marxista da ideologia é preciso, elegante e didático. Ver Bell, 1980: 319-326.
3Para uma fundamentaçâo desse ponto, ver Silva, 2004; Losso, 2006; e Codato, 2008.
4 Para a questao da eficácia histórica da ideologia, v. também Engels, 1979b, vol. 3: 294.
5Ver, para essa lista de tarefas, Eagleton, 1997: 50-64 e passim.
6 Isso é mais típico em períodos de transiçâo social ou de transformaçâo das estruturas de dominaçâo. Quando se toma o Brasil dos anos 1920 a 1940, isso é bem saliente. Assim, por exemplo, a doutrina Góis foi a cobertura programática para a nova política do Exército nacional em nome de sua grandeza, poder e, em especial, do monopólio dos meios de violencia; o industrialismo (bem antes do desenvolvimentismo) foi a senha para a ascensâo da fraçâo industrial, abrigada sob o "pensamento económico" de Roberto Simonsen; o nacionalismo foi uma disposiçâo ao mesmo tempo estética e política dos intelectuais; o estatismo foi a divisa do tenentismo radical em nome de um Estado centralizador e intervencionista (promotor do "desenvolvimento" e da "independencia" nacionais); o tecnocratismo foi a justificativa ideológica para a superioridade política da burocracia de Estado e para sua pretensâo de monopolizar a iniciativa política e o poder governamental; e o trabalhismo, a bandeira da integraçâo política da classe operária e da incorporaçâo das questöes sociais pelo "Estado nacional".
7 Em princípios do século XX, o liberalismo político (devidamente aclimatado às condiçôes nacionais) poderia ser a ideologia da classe política, mas, segundo Warren Dean, nâo a da classe dominante: "o liberalismo, de um modo geral, nâo exerceu muita influencia entre os industriais paulistas durante as décadas de 1920 e 1930". Prova disso é que já na "década de 1920 começa-se a encontrar, no seio da elite [económica] de Sâo Paulo, mas principalmente entre os industriais, um robusto interesse pelas variedades do fascismo europeu". Segundo Dean, uma das razöes da implicância dos líderes da indústria com o liberalismo político clássico é que ele "fomentava a confusâo dos políticos profissionais" (Dean, s.d.: 184).
8O livro de Seliger citado é o Ideology and Politics (1976).
Referências
ABERCROMBIE, Nicholas; HILL, Stephen; and TURNER, Bryan S. The Dominant Ideology Thesis. London: Allen & Unwin. 1984.
ALTHUSSER, Louis. Idéologie et appareils idéologiques d'État. (Notes pour une recherche). In:_. Positions (1964-1975). Paris: Les Éditionssociales, p. 67-125. 1976.
BELL, Daniel. O fim da ideologia. Brasilia: Editora Universidade de Brasilia. 1980.
BENDIX, Reinhard. Ideologia. In: Outhwaite, William e Bottomore, Tom (orgs.), Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1996.
BOBBIO, Norberto. Ensaio sobre ciência política na Itália. Brasilia: Editora Universidade de Brasilia; Sâo Paulo: Imprensa Oficial do Estado. 2002.
CODATO, Adriano. Elites e instituiçôes no Brasil: uma análise contextual do Estado Novo. Tese (Doutorado em Ciencia Política). Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. 2008.
DEAN, Waren. A industrializaçâo de Säo Paulo (1880-1945). 3g. ed. Sâo Paulo: Difel.s.d.
EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introduçâo. Sâo Paulo: Editora UNESP; Boitempo. 1997.
ENGELS, Friedrich. Carta de Engels a Bloch, 21-22 set. 1890. In: Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas. Säo Paulo: Alfa-Omega, vol. 3. 1979 a.
ENGELS, Friedrich. Carta de Engels a Mehring, 14 jul. 1893 In: Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas. Säo Paulo: Alfa-Omega, vol. 3. 1979b.
GEUSS, Raymond. The Idea of a Critical Theory: Habermas and the Frankfurt School. Cambridge: Cambridge University Press. 1981.
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. Ediçâo crítica do Instituto Gramsci. Valentino Gerratana (org.). Torino: Einaudi. 1977.
GRAMSCI, Antonio. Obras escolhidas. Säo Paulo: Martins Fontes.1978.
KNIGHT, Kathleen. Transformations of the Concept of Ideology in the Twentieth Century. The American Political Science Review, vol. 100, n. 4: 619-626. 2006.
LARRAIN, J. Ideologia. Tom Bottomore (org.), Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988.
LOSSO, Tiago Bahia. Estado Novo: discurso, instituiçoes e práticas administrativas. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Universidade Estadual de Campinas. Campinas (SP). 2006.
LYOTARD, Jean-François. La Condition postmoderne: rapport sur le savoir. Paris: Minuit. 1979.
MARX, Karl e ENGELS, F. L'ideologie allemande (« Conception matérialiste et critique du monde »). In: Karl Marx, OEuvres. Éd. établie par Maximilien Rubel. Paris: Gallimard, vol. III: Philosophie. 1982.
MARX, Karl. Critique de l'Économie Politique. In:_. OEuvres. Éd. établie par Maximilien Rubel. Paris: Gallimard, vol. I: Économie. 1965.
MARX, Karl. Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte. In: _. OEuvres. Éd. établie par Maximilien Rubel. Paris: Gallimard, 1994, vol. IV, Tomo I: Politique.
MULLINS, Willard A. On the Concept of Ideology in Political Science. The American Political Science Review, vol. 66, n. 2: 498-510. 1972.
POULANTZAS, Nicos. Pouvoir politique et classes sociales. Paris: Maspero. 1971.
SELIGER, Martin. Ideology and Politics. New York: Free Press. 1976.
SILVA, Ricardo. A ideologia do Estado autoritário no Brasil. Chapecó/SC: Argos. 2004.
SOARES, Gláucio Ary Dillon. Ascensäo e queda do marxismo: os dados que saem dos livros. Insight Inteligência, v. 15, n. 59, p. 54-62. 2013.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoría social crítica na era dos meios de comunicaçâo de massa. 2g.ed. Petrópolis: Vozes. 1995.
WILLIAMS, Raymond. Marxism and Literature. Oxford/New York: Oxford University Press.1977.
WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Säo Paulo: Boitempo. 2007.
Recebido em 02 de março de 2016
Aprovado em 10 de abril 2016
Adriano Codato1
1Doutor em Ciência Política. Professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: [email protected].
You have requested "on-the-fly" machine translation of selected content from our databases. This functionality is provided solely for your convenience and is in no way intended to replace human translation. Show full disclaimer
Neither ProQuest nor its licensors make any representations or warranties with respect to the translations. The translations are automatically generated "AS IS" and "AS AVAILABLE" and are not retained in our systems. PROQUEST AND ITS LICENSORS SPECIFICALLY DISCLAIM ANY AND ALL EXPRESS OR IMPLIED WARRANTIES, INCLUDING WITHOUT LIMITATION, ANY WARRANTIES FOR AVAILABILITY, ACCURACY, TIMELINESS, COMPLETENESS, NON-INFRINGMENT, MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR A PARTICULAR PURPOSE. Your use of the translations is subject to all use restrictions contained in your Electronic Products License Agreement and by using the translation functionality you agree to forgo any and all claims against ProQuest or its licensors for your use of the translation functionality and any output derived there from. Hide full disclaimer
Copyright Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciencias Humanas-CFH Jan-Apr 2016
Abstract
O propósito deste artigo é demonstrar alguns aspectos operacionais da noçâo teórica de "ideologia", tal como pensada pelo marxismo, a fim de enfatizar suas habilidades para uso prático na análise social. O argumento a ser defendido aqui é que, atualizado ou näo com as modas académicas, esse termo ainda funciona desde que compreendido no seu sentido integral. Mostro entäo como a transfiguraçâo do sentido do conceito (do negativo ao positivo) e da realidade que ele descreve (de fenómeno puramente mental para estrutura material), permite entender a prática ideológica como prática social, e como tudo isso vem enredado pela noçâo de "tradiçâo", tal como já pensada por Engels e Marx. Em seguida, enumero alguns pré-requisitos teóricos e metodológicos para produzir um mapa das ideologias de uma formaçâo social. Esse mapa pode servir näo apenas para descrever a topologia de um dado campo ideológico, mas para demonstrar como, quando e por que uma determinada ideologia se torna a ideologia dirigente e o seu discurso, o discurso dominante numa sociedade.