Resumo
Entre os povos indígenas presentes atualmente no Brasil incluem-se os Guarani. Desde o processo de expansao colonial, os conhecimentos dos povos colonizados - incluindo os saberes de práticas matemáticas - foram considerados pelos colonizadores como inferiores e sem valor. Diante deste quadro e da perspectiva multicultural da escola, este artigo tem como objetivo analisar o sistema de contagem Guarani e alguns símbolos gráficos das Aldeias Itaty do Morro dos Cavalos e M'Biguaçu, localizadas, respectivamente, nos municipios de Palhoça e Biguaçu, no estado de Santa Catarina - Brasil. Trata-se, metodologicamente, de um "estudo de caso do tipo etnográfico" realizado a partir da interlocuçao com líderes indígenas dessas aldeias e sustentado, teóricamente, pelos princípios do "Programa Etnomatemática". Os resultados das análises evidenciaram que tanto o sistema de contagem quanto os símbolos näo estäo dissociados de sua cultura e, assim, cumprem a funçao de quantificaçao e também o que denominamos, neste artigo, de funçao qualitativa.
Palavras-chave: Etnomatemática. Educaçao Escolar Indígena. Símbolos Gráficos Guarani. Cultura.
Abstract
The Guarani are one of several indigenous Brazilian tribes. Since the first Portuguese colonizers arrived to Brazil, the culture and costumes - including mathematical knowledge - and practices of Guarani and other indigenous people were considered inferior and unworthy. Considering this panorama and taking into account the multicultural features of Brazilian school, we present this article with the objective of analyzing the counting system and some graphical symbols of two Guarani tribes, the Itaty tribe, settled at the "Morro dos Cavalos" and M'Biguaçu tribe, located between the cities Palhoça and Biguaçu in Santa Catarina State, Brazil. This ethnographic case study was carried out through interviews with leaders of the Guarani tribes mentioned above. The present study is based on the theoretical principles of the "Ethnomatematics Program". The results of our analyses made evident that the counting system as well as the symbols employed are strongly correlated to these people's culture, thus playing roles both in quantification and in what we call in this paper as qualitative function.
Keywords: Ethnomatematics. Indigenous School Education. Guarani Graphic Symbols. Culture.
1 Introduçâo
Durante séculos, as relaçôes estabelecidas entre os indígenas e os nao indígenas no Brasil sao motivos de pouco orgulho neste país. A história nos mostra que as estratégias de contato e aproximaçao, impostas pelos nao indígenas aos indígenas, se caracterizavam (e ainda se caracterizam por alguns setores da nossa sociedade) pela ideia de dominaçao da cultura desta em relaçao àquela. De acordo com Luciano (2006, p. 41):
Os povos indígenas, ao longo de 500 anos de colonizaçao, foram obrigados, por força física e cultural, a reprimir e a negar suas culturas e identidades como forma de sobrevivencia diante da sociedade colonial, que lhes negava qualquer direito e possibilidade de vida própria.
Desde o processo de expansao colonial, as formas de conhecimento dos povos colonizados - incluindo os saberes de práticas matemáticas - foram consideradas pelos colonizadores como inferiores e sem valor. Essa concepçao implicou um acelerado processo de "esquecimento" da cultura dos colonizados. Os indígenas do Brasil colonial, por exemplo, foram submetidos a uma educaçâo escolar "[...] em que o objetivo das práticas educativas era negar a diversidade dos índios, ou seja, aniquilar culturas e incorporar mao-de-obra indígena à sociedade nacional" (FERREIRA, 2001, p. 72).
Em termos quantitativos, para se ter uma ideia da dimensao da política da causa indígena no Brasil, Oliveira e Rocha Freire (2006, p. 22) nos informam que, em 1500, quando da chegada dos europeus ao continente americano:
Há várias estimativas sobre o montante da populaçao indígena à época da conquista, tendo cada autor adotado um método próprio de cálculo (área ocupada por aldeia, densidade da populaçao etc.). Julian Steward, no Handbook of South American Indians calculou em 1.500.000 os índios que habitavam o Brasil (Steward, 1949). William Denevan projetou a existencia de quase 5.000.000 de índios na Amazonia (Bethell, 1998:130-131), sendo reduzida posteriormente essa projeçao para cerca de 3.600.000 (Hemming, 1978).
De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografía e Estatística (IBGE), em 2010, o Brasil possuía 896,9 mil indígenas distribuídos entre 305 etnias e 274 idiomas. A regiao Norte do país é a que possui mais indígena (342,8 mil) e a regiao Sul é a que apresenta um número menor deles (78,8 mil) (BRASIL, 2015).
Apenas no estado de Santa Catarina, regiao em que foi realizada esta pesquisa, entre os povos Guarani, Kaingáng e Xokleng, totalizam-se 16.041 indígenas, distribuídos em zonas urbanas e rurais, zonas essas denominadas de Terras Indígenas (TIs). Nesse estado estima-se que o número de índios Guarani é de aproximadamente 1.657 e verifica-se a presença de 21 aldeias/comunidades dessa etnia (BRIGHENTI, 2012).
Em sua cultura, os Guarani1 possuem aspectos determinantes, tais como cosmologia; lingua e as práticas de organizaçao familiar, política e social que os diferenciam de outros grupos indígenas e dos nao indígenas. Esses aspectos näo estäo dissociados, pelo contrário, se relacionam de maneira a constituir um todo que configura "o modo de ser Guarani".
Assim, este artigo tem como objetivo analisar o sistema de contagem e alguns símbolos gráficos dos Guarani das Aldeias Itaty2 do Morro dos Cavalos e M'Biguaçu, localizadas, respectivamente, nos municípios de Palhoça e Biguaçu, no estado de Santa Catarina - Brasil. Especificamente, apresentaremos o sistema e os símbolos gráficos desse povo dos números um até cem. Trata-se de alguns resultados de pesquisa presentes em Silva (2011) e, metodologicamente, de um "estudo de caso do tipo etnográfico" realizado com líderes indígenas das aldeias citadas anteriormente, sustentado teoricamente pelos princípios do "Programa Etnomatemática". Os resultados evidenciaram que tanto o sistema de contagem quanto os símbolos utilizados para representá-los, nenhum desses fatores está dissociado de sua cultura e, dessa forma, além de cumprirem a funçao de quantificaçao, também têm a funçao que denominamos, neste artigo, de funçâo qualitativa, que cumpre o papel de expor elementos da sua cultura.
2 As aldeias Guarani Itaty do Morro dos Cavalos e M'Biguaçu
Dentre as 21 aldeias indígenas Guarani presentes em Santa Catarina, incluem-se a Aldeia Itaty do Morro dos Cavalos e a Aldeia M'Biguaçu, ambas predominantemente Guarani. Essas aldeias estao localizadas às margens da Rodovia BR-101, sendo a primeira no Km 235 e a segunda, no Km 190, no sentido sul da referida rodovia. Segundo a Fundaçao Nacional de Saúde (FUNASA) e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), as aldeias acima citadas possuem, respectivamente, 126 e 156 habitantes (BRIGHENTI, 2012).
No que se refere à subsistência familiar, a agricultura é uma prática nas aldeias, concentrando-se principalmente em pequenas plantaçôes. A pesca inclui a captura de pequenos peixes de rio. A caça é praticada de maneira pouco intensiva, destacando-se a de pequenos mamíferos. Os Guarani produzem artesanato para uso em atividades domésticas, para uso em rituais e para fins comerciais. Ambas as aldeias recebem periodicamente atendimento médico, serviço que é mantido pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI)3.
No que se refere à Educaçao Escolar, a Aldeia Itaty do Morro dos Cavalos possui a "Escola Indígena (EI) Itatÿ" e a Aldeia M'Biguaçu possui a "Escola Indígena Whera Tupä-Poli TotyDja". Ambas oferecem Ensino Fundamental e Ensino Médio e sao mantidas pela Secretaria de Estado da Educaçao. O Ensino Médio da EI Itaty é oferecido na categoria de Educaçao de Jovens e Adultos4; já o Ensino Fundamental da EI Whera Tupä-Poli TotyDja é articulado com a "Educaçao Profissional Técnica de Nivel Médio" e visa, entre outros objetivos, preparar os alunos para o exercício de professional técnico em Meio Ambiente. Os professores da primeira escola sao todos indígenas e os da segunda constituem-se de indígenas e nao indígenas. Nas duas escolas, quando da coleta de dados desta pesquisa (em 2011), alguns professores indígenas estavam como discentes da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlántica.
Entre os diversos desafios que essas escolas indígenas citadas enfrentam está a revitalizaçao dos conhecimentos da cultura Guarani. Entre esses conhecimentos se incluem os etnomatemáticos, que podem ser pesquisados com as contributes do "Programa Etnomatemática".
3 Etnomatemática
Ao longo da historia, as concepçôes subjacentes ao conhecimento matemático foram motivo de muitas reflexöes e discordáncias por parte, principalmente, de filósofos e de matemáticos, sendo difícil e nao desejável estabelecer um consenso. Nesse processo, incluem-se aqueles que concebem a existência de apenas uma forma de Matemática chamada de Matemática universal. Em oposiçao a essa compreensao, está o Programa Etnomatemática, que entende que "[...] existem formas culturalmente distintas de manejar quantidades, números, medidas, formas e relaçôes geométricas" (FERREIRA, 1998, p. 7).
A Etnomatemática5, além de contribuir para a revitalizaçâo da etnomatemática de povos de diferentes culturas, como a dos indígenas, permite entender que a Matemática é uma produçao humana que resulta das necessidades específicas do grupo social. Assim, a etnomatemática Guarani das aldeias Itaty do Morro dos Cavalos e M'Biguaçu, por exemplo, nao está separada de sua cultura.
O termo "programa", usado por D'Ambrosio, tem o mesmo sentido do programa de pesquisa do epistemólogo Imre Lakatos. Chalmers (1993, p. 102) nos alerta para o fato de que:
Um programa de pesquisa lakatosiano é uma estrutura que fornece orientaçao para a pesquisa futura de uma forma tanto negativa quanto positiva. A heurística negativa de um programa envolve a estipulaçao de que as suposiçôes básicas subjacentes ao programa, seu núcleo irredutível, nao devem ser rejeitadas ou modificadas. Ele está protegido da falsificaçao por um cinturao de hipóteses auxiliares, condiçôes iniciais etc. A heurística positiva é composta de uma pauta geral que indica como pode ser desenvolvido o programa de pesquisa. Um tal desenvolvimento envolverá suplementar o núcleo irredutível com suposiçôes adicionais numa tentativa de explicar fenómenos previamente conhecidos e prever fenómenos novos. Os programas de pesquisa serao progressivos ou degenerescentes, dependendo de sucesso ou fracasso persistente quando levam à descoberta de fenómenos novos (grifos do autor).
De maneira ampia, D'Ambrósio (2005, p. 30) afirma que "[...] as ideias matemáticas, particularmente comparar, classificar, quantificar, medir, explicar, generalizar, inferir e, de algum modo, avaliar, sao formas de pensar, presentes em toda espécie humana". O que quer dizer que os significados, linguagens e uso dessas ideias nao sejam os mesmos em todas as culturas. Nesse trabalho, em relaçao ao sistema de contagem Guarani, daremos indicativos que evidenciam essa afirmaçao.
A citaçao seguinte, elaborada por D'Ambrósio (2006, p. 286), contribui para o debate a respeito das ideias que circundam a etnomatemática. De acordo com esse pesquisador,
Na pretensao de expressar essas idéias [sobre etnomatemática] em uma palavra, decidi arriscar um abuso etimológico, introduzindo o neologismo etno-matemá-tica. Recorrendo, obviamente com limitada competencia, ao grego e, certamente, motivado pelas minhas preocupaçôes históricas e filosóficas com a natureza e o significado da matemática, decidí usar, para 'artes e técnicas', a palavra technée a grafía aproximada tica. Para 'entender, explicar, lidar com' utilizei, abusivamente, mathema, ou materna, o que provocou reaçôes, esperadas, dos especialistas na lingua grega. E para 'ambiente natural, social e cultural', usei o obvio ethno, ou etno. O abuso foi além e ampliei o sentido de etno para incluir 'próximo ou distante'. E a mençao, muito importante, à assunçao, pela espécie humana, 'seu direito e capacidade' de modificar o ambiente natural, social e cultural, está implícito, com maior ou menor visibilidade e intensidade, em todos os mitos de criaçao. Daí surgiu etno-matema-tica. Uma parte da crítica focalizou o fato de que matemática nao reflete a etimologia de 'matemática', que, no sentido usado a partir da Baixa Idade Média e do Renascimento, é também um neologismo. Realmente, o matema, que é uma das raízes etimológicas da palavra etnomatemática, tem pouco a ver com 'matemática' (grifos do autor).
A base teórica do Programa Etnomatemática considera que a Matemática é uma produçâo humana que se constitui como uma maneira ou uma técnica de explicar, entender e lidar com diferentes contextos naturais, sociais e económicos da realidade.
Segundo os termos de Vergani (2007, p. 25):
[...] a etnomatemática se debruça com o respeito sobre as culturas tradicionais nao-europeias, conferindo-lhes uma dignidade que nem sempre é reconhecida. Mas está longe de poder ser identificada com 'iletrada', ou de ser definida como a matemática dos 'primitivos', dos 'imigrantes' ou dos 'pobrezinhos do 3° mundo'.
Ferreira (1994, p. 91) usa o Programa Etnomatemática de forma a respeitar ao máximo a cultura investigada e, segundo ele, esse Programa "[...] é uma tentativa permeada pela busca dos mitos compartilhados que sejam matematicamente significativos [...]". Nessa busca, pode-se melhor compreender a Matemática de um povo e, consequentemente, respeitá-la. Nesse sentido, Scandiuzzi (2009, p. 19) nos alerta para o fato de que,
[...] quando conhecemos a matemática de um grupo social culturalmente identificável, ele passa a fazer parte de nós e seus hábitos e costumes seräo respeitados, näo seräo folclore nem tidos como 'menores', necessitando de uma reeducaçao.
Assim, defendemos, neste artigo, uma base teórica para a Etnomatemática no sentindo dambrosiano, em que a Matemática pode ser entendida como a arte ou a técnica de conhecer e entender os saberes de quantificaçao, números, medidas, formas e relaçôes geométricas de determinada cultura e que o que é ensinado pela cultura escolar é uma dessas artes ou técnicas.
4 Procedimentos metodológicos
Grande parte das pesquisas em Etnomatemática se realiza com conceitos e técnicas de coleta de dados oriundos da Antropologia. Essas pesquisas exigem uma aproximaçao entre pesquisador e pesquisado de tal forma que o pesquisador deve conhecer elementos da cultura a ser pesquisada. Os resultados podem, quando for o caso, contribuir para a revitalizaçao da cultura oprimida, dominada e esquecida dos povos colonizados. Essa revitalizaçao deve ocorrer por uma questao de dignidade e justiça e nao apenas por pena ou por curiosidade em conhecer o outro.
Para identificar o sistema de contagem Guarani como um conjunto de conhecimentos entrelaçados à sua cultura, foi necessário observar, ouvir, interagir, "sentir" e registrar as falas do povo Guarani no seu ambiente próprio. Para tanto, utilizamos elementos das pesquisas etnográficas, elementos como observaçâo participante, estranhamento e o principio da relativizaçâo. Entendemos que nossa metodologia de pesquisa foi o que André (2006a, 2006b, 2008) e Lüdke e André (1986) definem como "estudo de caso do tipo etnográfico". Segundo André (2008, p. 31),
[...] pode-se dizer que o estudo de caso tipo etnográfico em educaçao deve ser usado quando: (1) há interesse em conhecer uma instância em particular; (2) pretende-se compreender profundamente essa instância em sua complexidade e totalidade; e (3) busca-se retratar o dinamismo de uma situaçao numa forma muito próxima do seu acontecer natural.
Enfatizamos que há uma diferença de enfoque entre as pesquisas realizadas na Antropologia e na Educaçao. No primeiro caso, tradicionalmente, os antropólogos fazem etnografía tendo como objetivo descrever a cultura (práticas, hábitos, crenças, valores, linguagens, significados, dentre outros) de um grupo social. No caso dos pesquisadores em Educaçao, a preocupaçao central é com o processo educativo. Por isso, a Educaçao faz estudo de caso do tipo etnográfico e nao etnografía no seu sentido estrito. Trata-se de uma adaptaçao da etnografía à Educaçao. Essa adaptaçao permite que certos requisitos subjacentes à Antropologia, como longa permanência do pesquisador em campo e uso de amplas categorias sociais na análise de dados, nao sejam cumpridos (ANDRE, 2008).
Por se tratar de um estudo de caso, as consideraçôes que faremos neste artigo dizem respeito apenas aos símbolos gráficos do sistema de contagem dos Guarani que pesquisamos. Nesse sentido, utilizamos várias técnicas de coleta de dados, tais como fotos, gravaçôes em áudio, entrevistas, transcriçôes e anotaçôes no diário de campo. Conforme solicitaçao dos participantes da pesquisa, algumas entrevistas foram gravadas e outras, nao. Algumas entrevistas aconteceram nas escolas das aldeias pesquisadas, outras no interior da mata e outras, ainda, aconteceram na casa dos participantes da pesquisa6.
Como critério de escolha dos participantes da pesquisa, buscamos pessoas que se relacionavam tanto na cultura indígena quanto na nao indígena e que, possivelmente, compartilham com os conhecimentos tradicionais indígenas e também com os conhecimentos de outros segmentos da sociedade nacional. Dessa forma, concebemos que nossa compreensao a respeito dos conhecimentos indígenas seria mais fácil. Preferencialmente, os envolvidos na pesquisa deveriam de alguma forma participar efetivamente do cotidiano das aldeias. Assim, em diálogo com a comunidade, sugerimos que os participantes seriam, preferencialmente, os professores indígenas e nao indígenas das escolas das aldeias.
Os critérios de escolhas recaíram sobre os seguintes indígenas: Adäo Antunes (Karaí Tataendy), Wanderley Moreira (Karai Ivyju Miri), Geraldo Moreira (Karai Okenda) e Santiago de Oliveira.
Adäo reside atualmente na Aldeia Itaty do Morro dos Cavalos. É professor Guarani da EI Itaty e da EI KaaKupe, da comunidade indígena do Massiambu - próxima à Aldeia Itaty do Morro dos Cavalos. Também é pesquisador da história indígena Guarani e autor do livro Antunes (2008). Os demais indígenas residem atualmente na Aldeia M'Biguaçu e trabalham na coordenaçâo e na docência na EI Whera Tupä-Poli TotyDja. Wanderley pesquisou a etnomatemática Guarani por mais de cinco anos junto à grande liderança religiosa, espiritual e xamä da comunidade, o Karai Alcindo Moreira Werá Tupä que é considerado, pelos próprios indígenas, uma pessoa de grande sabedoria para os Guarani. Geraldo é pesquisador da cultura Guarani. Santiago está pesquisando a Matemática usada pelos Guarani atualmente. Os três primeiros indígenas apresentados säo líderes de suas comunidades e, na época da coleta de dados (em 2011), eram discentes da UFSC no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlántica. Wanderley e Geraldo, após sete anos sendo orientados pelo Karai Alcindo, concluíram seu trabalho de conclusäo de curso (TCC).
5 Análises e considerares
A discussäo desta seçâo apresenta os símbolos gráficos do sistema de contagem Guarani dos números um até cem. Inicialmente se faz necessário entender que a principal base de contagem Guarani é cinco7. Para eles, há dois motivos que justificam por que constituir grupos de cinco elementos na contagem: o número de dedos de uma mäo8 e o caule da mandioca. No que concerne ao caule da mandioca, os Guarani encontraram um padräo de organizaçâo que está ilustrado na Figura 1.
De acordo com os conhecimentos Guarani, para a constituiçao do seu sistema de contagem tomam como pressuposto básico que a superficie do caule da mandioca possui vários caroços que se alinham a cada grupo de cinco9.
A seguir, além de retomar a discussäo a respeito da base de contagem, discutimos os cinco primeiros símbolos gráficos Guarani presentes no Quadro 110.
As discussöes anteriores indicam que os símbolos gráficos Guarani do Quadro 1 têm origem no padräo de organizaçao que os Guarani encontraram no caule da mandioca. Os primeiros quatro símbolos sao representaçôes dos caroços do caule da mandioca que sao desenhados em forma de pequenas circunferencias que podem ou nao estar alinhadas. O símbolo para o número cinco é justificado porque, unindo os extremos a cada cinco caroços, temos a formaçao de uma figura geométrica que se assemelha a um segmento de reta11.
Para representar os números de seis a nove, conforme Quadro 2, é necessário usar a adiçao entre duas parcelas. Ao usar essa operaçao, uma das parcelas deve ser o cinco - base de contagem do sistema Guarani - e a outra deve ser o complemento. Assim, para representar o número seis deve-se colocar o símbolo de cinco junto ao símbolo do um. Os símbolos que representam as quantidades sete, oito e nove sao constituidos de forma análoga. No caso da representaçao do número dez, basta agrupar dois conjuntos de cinco, ou seja, dois segmentos de reta.
Para representar o número onze, conforme Quadro 3, deve-se saber que onze pode ser obtido pela adiçao do dez com o um. Dessa forma, agrupam-se os dois segmentos de reta, que configuram o número dez, com uma pequena circunferencia, que figura a unidade. Os símbolos que representam doze, treze e quatorze seguem o mesmo padrao de dez, ou seja, sao formados a partir de dez (dois segmentos de reta) com circunferencias que representam dois, très ou quatro.
Os símbolos para os números quinze, vinte e vinte e cinco, conforme Quadro 4, sao formados seguindo a mesma lógica de explicaçao dada ao símbolo de dez, ou seja, o quinze, que é o agrupamento de très conjuntos de cinco, o vinte, que é o agrupamento de quatro conjuntos de cinco, e o vinte e cinco, que é o agrupamento de cinco conjuntos de cinco, sao representados por très, quatro e cinco segmentos de reta, respectivamente.
Aqui aparece uma novidade, que é a seguinte: para representar múltiplos de cinco maiores ou iguais a 15, como quinze, vinte ou vinte e cinco, além da forma apresentada no Quadro 4, pode-se usar, respectivamente, o que na geometria euclidiana chamamos de triángulo, quadrado e pentágono. Com isso, um número pode ter mais de um símbolo gráfico. Se a contagem dá a ideia de algo fechado, sem sequência ou encerrada, os números quinze, vinte, e vinte e cinco tèm, como símbolos, polígonos fechados - triángulo, quadrado e pentágono. No caso de contagens que dâo a ideia de algo que possui sequència, esses sâo formados pelo agrupamento de segmentos organizados conforme o Quadro 4. Mais adiante veremos que o "triángulo" também é o símbolo gráfico do número quarenta.
É necessário saber fazer a adiçâo entre duas parcelas para representar os demais números menores do que vinte e nove. Deve-se usar a regra que uma das parcelas deve ser um múltiplo de cinco e a outra deve ser um, dois, très ou quatro. Assim, em termos simbólicos, a representaçâo dos números é feita usando segmentos de reta, que representam os múltiplos de cinco, com circunferèncias, que representam um, dois, très ou quatro. Para representar vinte e dois, por exemplo, é necessário saber que 22 = 4 x 5 + 2, para entäo desenhar quatro segmentos de reta, que representa vinte mais duas circunferèncias, que representa dois.
No caso do símbolo do número vinte e oito, além da representaçâo já discutida, é possível representar esse número com uma circunferencia um pouco maior significando um ciclo da lua12.
Nota-se que, para representar números um pouco maiores, torna-se prático representar o cinco como um segmento de reta e nâo apenas como um conjunto de cinco circunferèncias.
Do ponto de vista gráfico - e nâo de significado -, os símbolos Guarani que representam os números um a dezenove sâo semelhantes aos símbolos que os maias usavam.
O símbolo maia para o zero lembra o desenho de uma concha. Os símbolos de um a dezenove sao formados a partir da combinaçao apropriada de segmentos de reta e pontos. A presença do zero facilitava as operaçôes básicas matemáticas, além de auxiliar o aspecto posicional do sistema maia, o que é conveniente do ponto de vista quantitativo. Durante nossa pesquisa nao conseguimos identificar esses aspectos quantitativos no sistema Guarani. Além disso, apesar da semelhança gráfica entre os símbolos dos dois sistemas, no caso Guarani, cabe dizer que cada símbolo gráfico cumpre principalmente a funçao qualitativa que é aquela que permite expor elementos de sua cultura. Assim, um símbolo gráfico Guarani nao é apenas uma figura geométrica sem sentido cultural e que serve apenas para a funçao quantitativa, pois, sobretudo, presta-se a contemplar os aspectos qualitativos.
Retornando exclusivamente à análise dos símbolos Guarani, passamos para o símbolo do numero trinta, conforme Quadro 6. Nesse símbolo há um pequeno segmento de reta vertical que liga os dois segmentos de reta horizontais da parte de cima. Esse segmento vertical nao representa a quantidade cinco, pois se trata apenas de uma forma de diferenciar. Caso representasse cinco, teríamos um conjunto de sete segmentos de reta - seis horizontais e um vertical - em que cada um representa cinco totalizando, dessa forma, a quantidade trinta e cinco. Essa diferenciaçao do trinta em relaçao aos demais múltiplos de cinco até aqui analisados tem um significado. É que, a partir da idade de trinta anos, o indivíduo Guarani inicia outra etapa da vida que deve ser seguida. Essa nova etapa necessita de um nível de amadurecimento diferenciado em relaçao às idades inferiores. Dessa forma, o símbolo gráfico para a quantidade trinta deve possuir algo que o diferencie dos símbolos anteriores. Essa diferenciaçao, além de facilitar a contagem, uma vez que um conjunto de muitos símbolos iguais pode confundir a contagem, evidência questöes intrínsecas ao modo de conceber o mundo do Guarani. Constata-se que um segmento de reta nao possui apenas a funçao quantitativa, pois essa figura geométrica pode ter a funçao qualitativa.
Para formar os símbolos para os números trinta e um, trinta e dois, trinta e très e trinta e quatro, para isso basta agrupar o símbolo do trinta com pequenas circunferencias. O símbolo para o número trinta e cinco é o agrupamento do símbolo do trinta com mais um segmento de reta.
Ao entender que o símbolo de trinta exige uma diferenciaçao, indicando uma funçao qualitativa, constatamos que o segmento de reta vertical presente em trinta e cinco nao deve ligar os dois segmentos horizontais de cima, mas, sim, o quinto e o sexto segmentos. Caso a opçao fosse colocar o segmento vertical daquela e nao dessa forma, nao respeitaríamos o significado do símbolo de trinta.
Os símbolos do Quadro 7, de trinta e seis até o trinta e nove, sao obtidos através do agrupamento do símbolo de trinta e cinco com pequenas circunferencias.
Seguindo a regra de agrupar segmentos de reta com pequenas circunferencias, esperávamos que o símbolo do quarenta fosse um conjunto de oito segmentos de reta horizontais e um segmento vertical. Porém, essa quantidade é representada com a figura que a geometria euclidiana definiu como triángulo. Dessa maneira, os Guarani têm uma representaçao mais prática, pois é mais simples desenhar um triángulo do que fazer muitos segmentos de reta. Segundo as interpretaçôes de nossa pesquisa, o símbolo do quarenta representa o dente de um animal feroz e, assim, vemos que esse símbolo justifica-se pela forma como os Guarani observam a natureza e nao pela Matemática académica.
Anteriormente dissemos que o "triángulo" poderia ser o símbolo do número quinze quando a contagem dá a ideia de terminalidade. Acontece, porém, que esse símbolo também se refere ao número quarenta e dá a ideia de um dente de animal. Para os Guarani, as duas interpretaçôes sao válidas e o que importa é que os símbolos exprimam nao apenas aspectos quantitativos, mas, acima de tudo, elementos da cultura.
Os símbolos para quarenta e um, quarenta e dois e quarenta e três, conforme o Quadro 8, representam uma maneira de se orientar no espaço que é baseada no Sol. As circunferencias colocadas em torno do símbolo de quarenta nao sao dispostas de maneira aleatoria. Depois de colocada a primeira, a seguinte deve ser colocada no sentido como os Guarani concebem que é a orientaçao do Sol.
Segundo os conhecimentos da cultura Guarani, o homem nao está separado da natureza e, por isso, ele é um elemento que constitui o símbolo gráfico do quarenta e quatro e que está representado com a circunferencia interna ao triángulo deste símbolo.
O símbolo de quarenta e cinco, conforme Quadro 9, é apenas o agrupamento dos símbolos de quarenta com o de cinco. O segmento de reta usado na representaçao em questao tem aspecto de quantificaçao e nao de diferenciaçao.
A circunferencia presente na representaçao de quarenta e seis representa o útero da mulher ou uma germinaçao e nao um caroço da mandioca. Esta circunferência, inclusive, possui um tamanho maior em relaçao às demais até entao apresentadas. Os demais símbolos do Quadro 9 também têm esse mesmo sentido e, inclusive, cada circunferência representa o surgimento de novas crianças ou plantas.
O símbolo de cinquenta, conforme o Quadro 10, possui dois triángulos, três segmentos de reta e uma circunferência. Ocorre, no entanto, que cada triángulo nao quantifica quarenta, cada segmento de reta nao quantifica cinco e a circunferência nao quantifica um. Se assim fosse, totalizaríamos noventa e seis. O significado do símbolo gráfico de cinquenta está na agricultura. Esse símbolo, se usado nessa atividade, representa que as plantas já possuem raízes e em breve já poderao ser colhidas. Logo, interpretamos que os segmentos de reta, os triángulos e a circunferência que compöem o símbolo de cinquenta sao organizados para diferenciar um novo ciclo da agricultura e nao apenas para quantificar.
Para os símbolos de cinquenta e um, cinquenta e dois, cinquenta e três e cinquenta e quatro, o sentido de disposiçao das circunferências externas aos triángulos nao é o mesmo que é usado para o quarenta e um até quarenta e quatro. Isso se deve ao fato de que o solsticio representa um novo ciclo na natureza, assunto que é de conhecimento dos Guarani e que deve ser representado nos símbolos gráficos. Para esses símbolos, vemos que cada circunferencia externa aos triángulos indica quantitativamente uma unidade. Já o sentido horário como sao colocadas tem a funçao qualitativa de diferenciaçao de um novo ciclo.
Ainda sobre os símbolos de cinquenta e um a cinquenta e quatro, as circunferências externas aos triángulos podem representar as fases da lua.
Além de uma possível funçao de quantificaçao, o símbolo de cinquenta e cinco, conforme o Quadro 11, pode expressar a mensagem que, quando esse símbolo for colocado na casa de reza, ele pode dizer que uma mulher, na menstruaçao, nao deve entrar nesse espaço sem a permissao do líder espiritual.
A associaçao entre a mulher e os símbolos também está presente nos símbolos de cinquenta e seis até cinquenta e nove. Nesses símbolos, tenta-se representar a formaçao do corpo de uma mulher. Respectivamente, representa-se a constituiçao dos braços, da cabeça, dos seios, cabeça e seios e, ainda, do útero.
Apesar de que o segmento de reta horizontal presente na composiçao do cinquenta e cinco representa cinco, seu significado nao é apenas associado à mandioca. Seu significado qualitativo, nesse contexto, é ser parte da formaçao do corpo da mulher.
Com relaçao ao símbolo de sessenta, conforme apresentado no Quadro 12, ele é associado à origem do universo. Nesse símbolo, cada uma das circunferências concéntricas nao representa a unidade e, ao invés disso, essas circunferências podem representar uma laranja cortada que possui internamente uma semente.
No caso dos símbolos de sessenta e um até o sessenta e quatro, cada uma das circunferências externas às duas circunferências concêntricas representa, quantitativamente, a unidade. Do ponto de vista de significado, as duas primeiras circunferências externas, que constituem sessenta e um e sessenta e dois, representam o Sol e a Lua. As outras circunferências externas, que constituem sessenta e três e sessenta e quatro, podem representar planetas. Ainda sobre as circunferências externas, além dos significados já discutidos, cada uma delas também pode ser a representaçâo das direçôes norte, sul, leste e oeste.
No caso de sessenta e cinco, conforme apresentado no Quadro 13, o segmento de reta oblíquo quantifica cinco. Do ponto de vista qualitativo, ele representa que os Guarani possuem conhecimentos sobre astronomia e simetria. Para eles, esse segmento pode simbolizar o anel de Saturno ou, ainda, o eixo de rotaçâo de um planeta. Esse eixo ainda evidencia que os Guarani possuem conhecimentos a respeito de simetria, pois, para eles, ao colocarem as circunferências que iräo formar os símbolos de sessenta e cinco até sessenta e nove, o segmento de reta serve como eixo de simetria. Assim, depois de colocada uma das circunferências näo concéntricas, a próxima a ser colocada deve ser simétrica em relaçâo ao segmento de reta.
No caso do símbolo do setenta, conforme apresentado no Quadro 14, cada circunferencia näo quantifica. Nesse caso, esse símbolo como um todo representa o Cruzeiro do Sul e, com isso, vemos que os Guarani possuem conhecimentos astronómicos a respeito dessa constelaçâo.
O símbolo de setenta e um é a junçâo do símbolo do setenta com uma circunferencia e um segmento de reta. Em termos quantitativos, a circunferencia representa um, já o segmento de reta nao possui valor quantitativo. Do ponto de vista qualitativo, essa circunferencia representa o planeta Terra e esse segmento, além de poder ser a representaçao de uma estrela cadente, pode representar que os Guarani entendem que há ligaçao entre este planeta e o Cruzeiro do Sul. Ao conceber essa ligaçao, esse povo pensa que, para entender as questöes presentes na Terra, tais como sua própria destruiçao, nao podemos pensá-la de maneira isolada.
Para compor os símbolos de setenta e dois até setenta e quatro, procede-se de maneira análoga à formaçao dos símbolos de sessenta e seis até sessenta e nove, ou seja, usam-se os segmentos de reta perpendiculares como eixos de simetria.
O símbolo de setenta e cinco, conforme apresentado no Quadro 15, possui um segmento de reta na parte de baixo que representa a quantidade cinco. Esse segmento possui, no entanto, um significado que nao é apenas quantitativo, pois, qualitativamente, é a representaçao do mundo dos espíritos. Na sequência, as circunferencias da parte inferior dos símbolos de setenta e seis até setenta e nove surgem no mundo dos espíritos, consequentemente, essas figuras devem estar abaixo do símbolo de setenta e nao ao redor.
O símbolo de oitenta, conforme apresentado no Quadro 16, representa o Sol, que, para os Guarani, é o próprio Nhanderu [o próprio Deus]. Os demais símbolos do Quadro 16, sem uma ordem fixa, dao a ideia do encontro de um líder espiritual falecido com o Sol e, além disso, representam o surgimento da Lua, da Terra e do homem, elementos que, segundo a mitologia Guarani, estao presentes na constituiçao do mundo. Para todos os símbolos desse quadro sao evidenciadas questöes espirituais.
Na parte de baixo dos símbolos do Quadro 17, o segmento de reta quantifica cinco e cada circunferencia quantifica uma unidade. Qualitativamente, expondo conhecimentos Guarani, esse segmento representa uma separaçâo entre partes do universo. De um lado dessa separaçâo, incluindo a Terra, há lugares em que há vida; já do outro há outros elementos sem vida, tais como, por exemplo, meteoros, representados pelas circunferências.
Anteriormente discutimos que o símbolo de quarenta - definido na geometría euclidiana como triángulo - é representaçâo de um dente. O símbolo de noventa, conforme apresentado no Quadro 18, pode representar quatro dentes ou o trevo de quatro folhas.
Cabe destacar que o triángulo sozinho quantifica quarenta, no entanto quatro triángulos agrupados näo quantificam quatro vezes quarenta, ou seja, cento e sessenta. As circunferências presentes nos símbolos de noventa e um até noventa e quatro podem representar tanto as direçôes norte, sul, leste e oeste quanto os povos Guarani, Kaigang, Xogleng13 e Juruá [näo indígena].
Na parte de baixo dos símbolos do Quadro 19, o segmento de reta quantifica cinco e cada circunferencia quantifica uma unidade. Qualitativamente, as circunferencias representam a presença espiritual dos povos Guarani, Kaigang, Xogleng e Juruá. O segmento de reta indica a existência de um local espiritual em que esses povos podem estar.
O símbolo de cem, conforme apresentado no Quadro 20, é a representaçao de uma águia. Os animais sao importantes para os Guarani e, inclusive, na mitologia deles, Deus está presente nos animais.
6 Consideraçoes fináis
Para interpretar os símbolos gráficos do sistema de contagem Guarani, tivemos como referencial teórico o "Programa Etnomatemática" e, dessa forma, concebemos que a Matemática é uma maneira ou uma técnica de explicar, entender e lidar com diferentes contextos naturais, sociais e económicos da realidade. Nessas maneiras sempre estao presentes as seguintes ideias matemáticas: quantificar, comparar, medir, inferir, explicar, generalizar e, de algum modo, avaliar. Para entender essas ideias é necessário concebê-las como nao dissociadas de sua cultura.
Especificamente relativo aos símbolos que discutimos neste artigo, entendemos que os significados de cada um sempre expöem elementos da cultura Guarani, ou seja, as explicaçôes nao sao um conjunto de ideias separadas de sua cultura. Um dos exemplos é a forma tradicional de plantar e perceber a organizaçao do caule da mandioca. Dessa prática, os indígenas podem justificar que o símbolo dos números um e cinco significam, respectivamente um caroço e um pedaço de seu caule. Porém, mesmo que os Guarani desenhem os símbolos que, academicamente, chamamos de circunferência e de segmento de reta, os significados atribuídos sao provenientes da forma de agir e de pensar dos Guarani.
Sem a sensibilidade de entendermos o modo de ser Guarani, um matemático académico poderia inferir que os símbolos de uma circunferencia e de um segmento de reta usados no contexto Guarani representam, respectivamente, os números zero e um e, dessa forma, a interpretaçao Guarani de que esses símbolos representam um e cinco está errada. Discordamos desse entendimento e pensamos que, conforme nos alerta Caldeira (2007, p. 81),
[...] muitos conhecimentos matemáticos que as crianças apresentam, decorrentes de uma prática social, nao säo 'erros' conceituais da matemática, mas elaboraçôes advindas das suas relaçôes socioculturais.
O presente estudo, em sintonia com a metodología de pesquisa sobre estudo de caso do tipo etnográfico, evitou ao máximo cometer o equívoco de fazer generalizares absolutas e universais e, dessa forma, nossas análises relativas aos conhecimentos do sistema de contagem Guarani sao referentes apenas aos indígenas das Aldeias que pesquisamos. Cabe ainda dizer que sao apenas interpretares feitas por nao indígenas, que, buscando várias fontes de informaçao, se arriscaram em conhecer minimamente alguns elementos da cultura Guarani.
Um único símbolo pode ter tanto a funçao quantitativa quanto a funçao de expor elementos da cultura Guarani. A essa exposiçao chamamos de funçâo qualitativa. Ela está presente, por exemplo, no segmento de reta, que pode tanto quantificar cinco unidades como apenas qualificar que, aos trinta anos, os Guarani estao em um novo ciclo de vida, que deve ser diferenciado inclusive no símbolo gráfico para esse número.
Um único número pode ter mais de um símbolo, dependendo da associaçao que os Guarani fazem com elementos da natureza. O número vinte e oito, por exemplo, quando associado ao caule da mandioca, tem como representaçao cinco segmentos de reta e très circunferencias. Já se for feita uma associaçao com o ciclo da Lua, entao vinte e oito é representado por uma circunferencia um pouco maior.
O raciocínio multiplicativo também deve ser usado com cautela para analisar os símbolos gráficos Guarani. Nesse sentido, apesar de que um segmento de reta poder representar cinco, très segmentos de reta em forma do triangulo euclidiano podem quantificar tanto quinze quanto quarenta. Outra questao é que o triángulo euclidiano sozinho pode quantificar quarenta, no entanto très desses triángulos agrupados nao quantificam très vezes quarenta, ou seja, cento e vinte. Observando mais atentamente o símbolo de quarenta, noventa e de cem, notamos que, se um símbolo isolado representa certa quantidade, n desses símbolos agrupados nao irao necessariamente representar n vezes a quantidade do símbolo isolado.
Assim, dependendo da interpretaçao dada pelos Guarani, um símbolo pode quantificar quantidades diferentes.
1 Seguindo a "Convençao para Grafía dos Nomes Tribais", escreveremos os nomes indígenas sem flexäo de género e de número. Essa Convençao uniformizou a maneira de escrever os nomes das sociedades indígenas em textos na língua portuguesa. Ela foi assinada em 1953 pelos participantes da 1a Reunido Brasileira de Antropología, realizada no Rio de Janeiro, Brasil e foi publicada inicialmente na Revista de Antropología (vol. 2, n° 2, Sao Paulo, 1954, p. 150-152) e, posteriormente, no volume organizado por Egon Schaden, Leituras de Etnología Brasileira (Sao Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976) (MELATTI, J. C., 1999).
2 Em todo o artigo, os termos em Guarani serao escritos em itálico.
3 A SESAI é uma área do Ministério da Saúde do Brasil que tem como missao principal proteger, promover e recuperar a saúde dos povos indígenas.
4 O sistema de educaçao brasileiro constitui-se de Educaçao Básica e Ensino Superior. A Educaçao Básica subdivide-se em Educaçao Infantil (0 a 5 anos), Ensino Fundamental (6 aos 14 anos), Ensino Médio e Educaçao Profissional Técnica de Nível Médio (15 aos 17 anos) e Educaçao de Jovens e Adultos (acima de 16 anos).
5 Em nossos termos, quando for escrito Etnomatemática [letra maiúscula], estaremos nos referindo ao Programa Etnomatemática. O termo etnomatemática [letra minúscula] refere-se à matemática produzida e usada por certa cultura que, neste artigo, é a Guarani.
6 Os dados foram coletados entre 2008 e 2011.
7 Os Guarani também contam de maneira a constituir grupos de vinte e de vinte e cinco elementos. Ler Silva (2011).
8 Há uma maneira própria de se contar com as mäos em que se busca formar pares em grupos de cinco. Para ter mais detalhes, ler Silva (2011).
9 Nao desejamos, a partir da Figura (1), afirmar que todos os caules de mandioca têm essa organizaçao. Queremos apenas destacar que se trata de um conhecimento compartilhado pelos Guarani.
10 Os símbolos de um até vinte foram expostos por todos os nossos entrevistados. Os demais símbolos foram expostos por Wanderley.
11 Para fazer uma plantaçao de mandioca, um caule é cortado em pequenas partes de maneira que cada parte é seccionada a cada grupo de cinco caroços. Depois de feita a seçao, cada pedaço é enterrado.
12 Pelos conhecimentos nâo indígenas, o período sideral da Lua (intervalo de tempo em que a Lua descreve uma volta em torno da Terra no sistema de referencia das estrelas fixas) é aproximadamente 27,32 dias. O tempo entre duas fases iguais consecutivas (por exemplo, duas luas novas consecutivas) é denominado de período sinódico da Lua, é de aproximadamente 29,53 dias, variando entre 29,3 e 29,8 dias. As causas dessas variaçôes sâo diversas (SILVEIrA, 2001).
13 Em Santa Catarina há très povos indígenas: Guarani, Kaigang e Xokleng.
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VERGANI, T. Educaçâo etnomatemática: o que é? Natal: Flecha do Tempo, 2007.
Submetido em Junho de 2015.
Aprovado em Dezembro de 2015.
Sérgio Florentino da Silva*
Ademir Donizeti Caldeira**
* Doutorando em Educaçao Científica e Tecnológica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor de Matemática do Departamento de Cultura Geral do Instituto Federal de Santa Catarina (IF-SC). Endereço para correspondencia: Rua José Lino Kretzer, 608, CEP: 88103-310, Sao José/SC, Brasil. E-mail: sergio .florentino @ifsc.edu.br.
** Doutor em Educaçao pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor do Departamento de Metodologia de Ensino do Centro de Educaçao e Ciencias Humanas da Universidade Federal de Sao Carlos (UFSCAR). Endereço para correspondencia: Rod. Washington Luís - km 235 (SP - 310), CEP: 13565 - 905, Sao Carlos/SP, Brasil. E-mail: [email protected].
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Copyright Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho" - IGCE - Depto de Matemática Dec 2016
Abstract
The Guarani are one of several indigenous Brazilian tribes. Since the first Portuguese colonizers arrived to Brazil, the culture and costumes - including mathematical knowledge - and practices of Guarani and other indigenous people were considered inferior and unworthy. Considering this panorama and taking into account the multicultural features of Brazilian school, we present this article with the objective of analyzing the counting system and some graphical symbols of two Guarani tribes, the Itaty tribe, settled at the "Morro dos Cavalos" and M'Biguaçu tribe, located between the cities Palhoça and Biguaçu in Santa Catarina State, Brazil. This ethnographic case study was carried out through interviews with leaders of the Guarani tribes mentioned above. The present study is based on the theoretical principles of the "Ethnomatematics Program". The results of our analyses made evident that the counting system as well as the symbols employed are strongly correlated to these people's culture, thus playing roles both in quantification and in what we call in this paper as qualitative function.
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