Resumo
Apresentamos no presente trabalho uma investigaçâo acerca dos modos pelos quais estudantes de licenciatura em física compreendem a realidade de entidades científicas e de entes que compöem outros dominios, como o religioso e o cotidiano. Como referencial teórico, adotamos uma abordagem sobre cultura que destaca a influência de diversos sistemas culturais nas formas de entendimento do mundo e permite conceber a ciência como um desses sistemas. Cultura é aqui entendida a partir das caracterizaçôes feitas por Sewell (2005), como um conjunto de várias estruturas que se sobrepöem, cada uma delas formada por esquemas e recursos. Nessa perspectiva, a aprendizagem científica seria um tipo de imersâo em uma nova cultura, sendo um processo sujeito a influências de outras estruturas culturais, que trazem diferentes abordagens e formas de entendimento do mundo. Essa influência pode se fazer presente inclusive na compreensäo de aspectos ontológicos do conhecimento científico, em particular no entendimento da realidade de entidades inobserváveis da ciência. O estudo aqui apresentado se deu por meio de um questionário, onde licenciandos em física atribuíram uma "intensidade da realidade" a entes/entidades pertencentes a diferentes contextos culturais e apresentaram uma justificativa para essa atribuiçâo. Entre os resultados obtidos, destacamos a possibilidade de mais de uma leitura acerca dos critérios usados pelos licenciandos para caracterizar a realidade das entidades científicas, inclusive uma interpretaçâo em que esses critérios parecem ser influenciados pelas estruturas culturais originárias do contexto cotidiano.
Palavras-Chave: Cultura; Realidade; Entidades Científicas
Abstract
In this research, we present an investigation about the ways by which undergraduate physics students understand the reality of scientific entities and entities that belong to other spheres such as religious and daily life. We adopt a theoretical approach of culture that highlights the influence of several cultural systems on the ways of understanding the world and that allows conceiving science as one of such systems Culture is understood here from characterization proposed by Sewell (2005), as a set of overlying structures, each one consisting of schemes and resources. From this perspective, scientific learning would be a kind of immersion in a new culture, being a process that is subject to influences of other cultural structures which brings other approaches and ways of understanding the world. This influence can be observed even in the comprehension of ontological aspects of scientific knowledge, particularly in understanding the reality of unobservable scientific entities. In this study, we used a questionnaire in which the physics undergraduate students assigned an "intensity of reality" to entities belonging to different cultural contexts and presented a justification to this assignment. Among the results obtained in our work, we highlight the possibility of more than only one interpretation about the criteria used by students to justify the reality of scientific entities, including that these criteria seem to be influenced by cultural structures whose origin is the everyday life.
Keywords: Culture; Reality; Scientific Entities
INTRODUÇÂO
Aprender ciências é muitas vezes visto como um simples processo de incorporar conceitos e técnicas de resoluçao de problemas. No entanto, adentrar o mundo das ciências pode ser considerado como algo semelhante à forma na qual conhecemos um novo país, distante culturalmente de nosso próprio país de origem. Isto se justifica pelo fato de que a ciência nos convida a ver o mundo de pontos de vista diferentes das formas de conhecimento que em geral possuímos, o que compreende novas dimensöes axiológicas, epistemológicas e ontológicas. A ciência possui uma racionalidade específica, além de critérios próprios de caracterizaçao do mundo.
Em uma interpretaçao semelhante, Martins, Ogborn e Kress (1999, p.30) afirmam que aprender ciência envolveria "[...] passar a conceber o mundo físico de forma diferente e vislumbrar outras dimensöes da relaçao entre o homem e a natureza". Como exemplo dessa forma diferente de conceber o mundo, esses autores colocam que na concepçao científica a matéria passa a ser vista como composta, principalmente, por espaço vazio; germes microscópicos sao os causadores dos resfriados e nao a chuva ou o vento frio; a Terra, normalmente vista como o chao em relaçao ao qual nos movimentamos, passa a ser considerada como ativa e em constante movimento.
A ideia de que os conhecimentos científicos permitem uma compreensao de mundo por meio de outra perspectiva pode ser relacionada com as ideias de Clifford Geertz sobre a cultura como um sistema de símbolos e significados (Geertz, 1973). A cultura passaria a ser fonte de informaçôes suplementar e necessária à condiçao humana. Geertz coloca que face às múltiplas possibilidades de açao oferecidas pelas situaçôes vivenciadas no mundo, os padrôes de comportamento humano e as respostas cognitivas e emocionais a estímulos e acontecimentos nao podem ser definidos apenas por fontes intrínsecas - nossa base genética. Nossa humanidade é também moldada por referências externas que servem de filtro e auxiliam na tomada de decisôes. Essa referência externa seria a cultura. Desse modo, a ciência - considerada aqui como um sistema cultural- com seus modos próprios de caracterizar o mundo, nos auxiliaria na definiçao de comportamentos e respostas cognitivas.
Neste sentido, o que Martins e colaboradores atribuem ao aprender ciências, como apenas uma nova forma de conceber o mundo, tratar-se-ia, em termos geertzianos, em aprender ou se apropriar de uma nova cultura, com regras e significados próprios.
Alguns autores têm feito referência à cultura em trabalhos sobre educaçao científica (Macedo & Katzkowicz, 2003; Santos, 2007), alguns deles utilizando a noçao de "enculturaçao" para definir o processo de apropriaçao da ciência pelos alunos (Driver et al., 1999; Carvalho, 2007). Os significados de cultura nesses trabalhos nem sempre estao claros, nao ficando explícito se ela é considerada uma categoria geral e única da vida social ou possui significado mais múltiplo, composto por formas específicas de dar significado e lidar com o mundo. No entanto, entendemos ser importante a utilizaçao de uma caracterizaçâo de cultura que possa especificar aspectos relevantes da ciência em comparaçao a outras formas de conhecimento.
No presente trabalho apresentamos uma definiçao de cultura que nos parece promissora e que permite caracterizar a ciência como uma estrutura cultural. Com base nessa definiçao, foi desenvolvida uma investigaçao das formas de entendimento de estudantes de licenciatura em física sobre a realidade de entidades que fazem parte da estrutura cultural da ciência e de entes que compöem outros domínios, relacionados a outras estruturas culturais. Consideramos que os critérios definidores da existência dessas entidades sao parte essencial do conhecimento científico, sendo fundamentais para o entendimento das formas pelas quais a ciência caracteriza o mundo.
O estudo aqui apresentado faz parte de uma pesquisa (Marineli, 2016) que realizou uma abordagem acerca da realidade das entidades científicas no contexto da formaçao de professores de física. É levado em consideraçao que um professor, durante sua atuaçao profissional, precisará lidar com a questao da realidade de entidades nao acessíveis aos sentidos, tendo talvez de explicar em que se baseia uma proposiçao sobre sua existência.
Reflexöes sobre a dimensao ontológica do conhecimento científico, ou seja, aquilo que existe no mundo na visao científica, parece nao receber muita atençao quando se pensa em formas mais tradicionais de ensino de ciências. Na física, átomos, elétrons, fótons sao elementos que fazem parte dessa dimensao ontológica, sendo produtos das investigaçoes científicas, mas muitas vezes sao apresentados de forma meramente operacional, tratados tao somente como "fatos objetivos", com ênfase em cálculos matemáticos de situaçôes que envolvem essas entidades. No entanto, consideraçôes a respeito dessa dimensao ontológica, em particular a questao da realidade de entidades inobserváveis, nao sao triviais, como percebemos nas discussôes referentes ao realismo/antirrealismo científicos (Dutra, 1998; Silva, 1998; Tiercelin, 1999).
Além da discussao filosófica sobre a realidade de entidades, julgamos que também é pertinente considerar as relaçôes que se estabelecem entre ciência e outras áreas de conhecimento, entre a visao científica e outras formas de compreender o mundo. Como já dissemos, uma forma de caracterizar as relaçôes entre o entendimento científico sobre o mundo e outras formas de entendimento, como a cotidiana por exemplo, é por meio de consideraçôes a respeito da cultura. Na perspectiva de Sewell (2005), a ciência pode ser caracterizada como uma estrutura cultural, que está sobreposta a outras estruturas com as quais as pessoas se relacionam no decorrer da vida. Desse modo, as relaçôes entre o conhecimento científico e outras formas de conhecimento podem ser entendidas como relaçôes entre diferentes estruturas culturais. As pessoas vivem imersas nessas distintas estruturas e, com isso, a aprendizagem das ciências sempre se dá em constante relaçao com outras formas de compreender o mundo.
Algumas ideias de Sewell, utilizadas no desenvolvimento deste trabalho, serao apresentadas a seguir.
CULTURA COMO ESTRUTURA FORMADA POR ESQUEMAS E RECURSOS
Cultura representa a forma pela qual os seres humanos agem em setores da vida social. Isso envolve a combinaçao de materiais e técnicas, padrôes de conduta, valores e comportamientos (Whitaker e Bezzon, 2006) que sao estruturados em diferentes modos semióticos (Geertz, 1973). A construçao desse sistema de práticas é historicamente determinada. Em particular, sistemas educacionais, escolas, salas de aula, entre outros, sao setores da vida social que se configuram como locais onde se produz e reproduz cultura. Além disso, cultura se torna um constructo importante para entender a vida social se ele puder explicar como a estabilidade e as mudanças sao possíveis nas práticas e açôes, considerando que as mudanças nao sao totalmente previsíveis. E uma abordagem a respeito das mudanças na vida social necessita de uma teoria cultural menos determinista e estática que aquelas propostas pelos antropólogos estruturalistas dos anos 1960, um entendimento da cultura como algo mais múltiplo, contingente e menos homogêneo.
Considerando os vários possíveis significados para cultura, Sewell (2005)1 faz uma distinçao entre dois significados amplos que ele entende como fundamentais. No primeiro deles, cultura seria uma categoria ou aspecto da vida social, teoricamente definido, que é abstraído da realidade complexa da existência humana. Aqui cultura é contrastada com algum outro aspecto ou categoria que nao é cultura, como a economia ou a política. É esse sentido de cultura que aparece na tradiçao do estruturalismo francés. Nessa acepçao, cultura é uma categoria analítica abstrata, sempre tomada no singular. Um segundo significado apontado por Sewell é o que caracteriza cultura como representando um concreto e delimitado mundo de crenças e práticas. Nesse sentido, o termo indica algo pertencente à sociedade ou isomórfico a ela ou, ainda, algo com alguma identificaçao com subgrupos dentro da sociedade. Cultura brasileira, cultura japonesa, cultura erudita, cultura de massa, cultura científica sao exemplos de cultura nesta segunda perspectiva. Aqui o termo cultura é usado no plural, representando diferentes mundos de significaçao, e o contraste nao é entre cultura e nao cultura, mas entre uma cultura e outra. Sewell afirma que esses dois significados para o termo cultura sao incomensuráveis, pois se referem a universos conceitualmente diferentes.
Acreditamos que os autores que usam o termo "enculturaçao" nas pesquisas sobre ensino de ciências associam-se com o constructo cultura no primeiro sentido acima definido por Sewell, ou seja, a ciência seria uma parte da dimensao cultural da vida em sociedade. Neste sentido, "enculturaçao" seria a apropriaçao de parte desta dimensao cultural que estaria fora do alcance dos alunos e para a qual a escola ou as instituiçôes de ensino deveriam se encarregar de dar acesso.
Por outro lado, no presente trabalho adotamos a segunda acepçao de cultura acima descrita, que permite que a ela seja entendida no plural, como um conjunto de várias estruturas que influenciam e moldam as formas de pensar, motivos, intençôes e açôes das pessoas, ao mesmo tempo em que sao reproduzidas e também moldadas pelas açôes humanas. Cultura nao formaria um todo único, claramente definido, coerente e resistente à mudança, como consideravam os estudos etnográficos (ou culturais) clássicos, mas algo que pode ser contraditório, menos integrado, mutável e permeável. De acordo com Sewell (2005), os diferentes mundos de significaçao permanecem juntos por meio de uma relaçao que pode ser conflituosa, em que há uma "coerência fina" entre os diferentes sistemas, que é continuamente posta em risco quando em açao e, desta forma, sujeita a transformaçôes. Deste modo, quando uma incompatibilidade cultural é produzida por uma influência externa, ou mesmo por movimentos internos à estrutura cultural, problemas emergem no sistema de práticas. É neste momento que o pano de fundo das transformaçôes se coloca como eminente. Em certas circunstâncias, as pessoas sao capazes de improvisar ou inovar, de modo a modificar ou reconfigurar as estruturas.
A definiçao de cultura no plural, como diferentes mundos de significaçâo, foi elaborada por Sewell a partir de algumas perspectivas: a de Geertz (Sewell 2005, cap. 5 e 6), da qual ele enfatiza os significados e entendimentos produzidos dentro de um sistema de símbolos e práticas; a de Giddens (2009), incorporando algumas de suas ideias acerca de estruturas sociais; e a de Sahlins (1985), de quem Sewell aproveita a noçâo de "Teoria Possível" para explicar a relaçâo entre estrutura e eventos. Desenvolvendo essa noçâo, Sewell encontra um meio de caracterizar os processos de transformaçâo de sistemas culturais definindo em primeiro lugar que se trata de múltiplas estruturas e que eventos indicam momentos nos quais as estruturas sao colocadas em cheque e podem ser remodeladas (Sewell 2005, cap. 7). Para ele, estrutura cultural compreende esquemas e recursos - noçôes formuladas a partir das ideias de Giddens (Sewell, 2005, cap. 4) - que sao partilhados por uma comunidade ou grupo social. Como dissemos, cultura é formada por sistemas com coerência fina e com contradiçôes sempre presentes, ou seja, é um campo de disputas e que possui uma lógica aberta, ou melhor, existem diferentes lógicas dentro dele. Isto implica que as fronteiras entre sistemas culturais sao fracas e eles se sobrepôem.
Caracterizando o significado de esquemas e recursos, os primeiros seriam procedimentos generalizáveis aplicados na açao ou reproduçao da vida social. Aqui entrariam regras de etiqueta, normas estéticas, voto democrático, papeis sociais de homens e mulheres, relaçôes entre público e privado, a noçao de que o ser humano é composto por corpo e alma etc. Além disso, os esquemas podem se fazer presentes nao somente nas situaçôes nas quais eles foram originalmente apreendidos ou mais convencionalmente aplicados, mas podem ser transpostos ou estendidos para outras situaçôes e, dessa maneira, constituem algo virtual. Já recursos seriam "elementos que servem como fonte de poder nas interaçôes sociais" (Sewell, 2005, p.132, traduçao nossa). Dessa forma, podemos considerar recursos como aquilo que habilita o individuo a realizar suas práticas dentro de um determinado sistema cultural. Recursos podem ser de dois tipos: humanos e nao-humanos. Esses últimos compreendem objetos, animados ou nao, manufaturados ou naturais; já recursos humanos se referem a força física, destreza, conhecimento e compromissos emocionais, incluindo-se aqui o conhecimento dos meios de ganhar, manter, controlar e propagar tanto recursos humanos quanto nao-humanos. Diferentemente dos esquemas que seriam virtuais, para Sewell recursos sao reais, pois existem no "tempo-espaço". Isso tanto para objetos materiais, quanto para características de pessoas que vivem em um determinado tempo e lugar. Sewell argumenta que os recursos possuem qualidades que certamente nao sao geradas por esquemas, apesar de poderem ser fonte de poder em um sentido que vai além de sua existência material. Ou seja, recursos (principalmente nao-humanos) possuem uma existência material que nao é redutível a esquemas, mas sua classificaçao como recurso depende do esquema cultural que informa seu uso social.
Dentro de uma determinada estrutura, esquemas (virtuais) e recursos (reais) entretém uma relaçao dialética: recursos seriam corporificaçôes dos esquemas, que poderiam ser "lidos" como um texto e, dessa forma, serem recuperados os esquemas culturais relacionados; ao mesmo tempo, esquemas sao mantidos e reproduzidos no decorrer do tempo somente por meio do uso de recursos. Desse modo, um implica na existência do outro e ambos se sustentam. No entanto, apesar dessa sustentaçao mútua, Sewell aponta que ainda assim é possível uma mudança nas estruturas. Para mostrar como isso é possível, ele propôe cinco axiomas: a multiplicidade de estruturas, a transponibilidade de esquemas, a imprevisibilidade na acumulaçâo de recursos, a polissemia dos recursos e a interseçao de estruturas.
Conforme já apontamos, para Sewell existe uma multiplicidade de estruturas moldando as relaçôes sociais. A sociedade é baseada em práticas derivadas dessas diferentes estruturas, que existem em diferentes níveis, operam em diferentes modalidades e sao baseadas em diferentes tipos de esquemas e recursos.
A transponibilidade de esquemas indica que os esquemas podem ser transpostos de uma estrutura para outra, permitindo a soluçao de problemas com formato similar. Ou seja, eles podem ser aplicados, de forma criativa, a casos fora do contexto em que foram inicialmente aprendidos, açao essa comumente caracterizada nas ciências sociais como "agency". Essa capacidade de transpor esquemas é inerente ao conhecimento de um membro minimamente competente de uma cultura.
Sobre a imprevisibilidade de acumulaçâo de recursos, o fato de um esquema poder ser aplicado a uma situaçao ou contexto novos tem como consequência que os recursos relacionados à influência desses esquemas nunca sao completamente previsíveis. Uma piada contada para uma nova plateia pode nao ter o mesmo resultado que teve anteriormente e, com isso, vir a ser descartada do repertório de um comediante; um investimento em um novo mercado pode tornar alguém rico ou pobre. Ambos os casos citados podem levar a uma mudança nos recursos (quantidade de piadas e de dinheiro). No entanto, a reproduçao de esquemas depende da continua validaçao por recursos; como eles podem ser validados de forma diferente quando sao postos em açao, potencialmente estao sempre sujeitos a modificaçôes.
A respeito da polissemia dos recursos, é considerado que recursos corporificam esquemas, mas seu significado nao é totalmente isento de ambiguidade. O sucesso de uma campanha militar pode ser atribuido às relaçôes entre os combatentes, sua disciplina e capacidade, reforçando seu poder, ou ser atribuido a um general comandante, aumentando a subordinaçao de todos a seu líder. Assim, de modo geral, qualquer conjunto de recursos pode ser interpretado de formas variadas, empoderando diferentes atores e podendo ensinar diferentes esquemas. Isso está relacionado com a possibilidade de se transpor esquemas a novos contextos, reinterpretando e mobilizando os recursos em termos dos novos esquemas, diferentes daqueles a que os recursos se relacionavam originalmente.
Ainda sobre recursos poderem ser interpretados de mais de uma forma, isso pode ser explicado porque diferentes estruturas culturais se sobrepöem, ou seja, há uma a interseçao de estruturas. Essa interseçao ocorre nao somente com recursos, mas também com esquemas; enquanto os recursos podem ser reivindicados por diferentes atores imbuidos de diferentes estruturas (ou de maneiras diferentes por uma mesma pessoa que toma parte em mais de uma estrutura) os esquemas podem ser apropriados ou emprestados de uma estrutura para outra.
Assim, podemos considerar estruturas como um conjunto de esquemas e recursos que se sustentam mutuamente, permitindo e limitando açôes sociais, e que tendem a se reproduzir por meio dessas açôes. Mas essa reproduçao nao é automática, uma vez que estruturas estao sempre em risco, ao menos até certo ponto, por serem múltiplas e se sobreporem, porque esquemas sao transponíveis, porque recursos sao polissêmicos e de acumulaçâo imprevisível.
A Ciência Como Cultura
Por meio do uso do referencial de análise sociocultural descrito anteriormente, podemos caracterizar a ciência como uma estrutura cultural que possui determinados esquemas e recursos. Desse modo, as diferentes especialidades da ciência podem ser consideradas como espaços culturais compostos por um conjunto de momentos de atuaçao de esquemas específicos e recursos próprios da cultura cientifica em voga. Neste sentido, pode-se definir cultura científica especificamente conectada com esquemas e recursos pertencentes ao modo característico de atuaçao dos cientistas em suas práticas usuais. Trata-se de um sistema cultural onde símbolos e significados sao partilhados por uma comunidade de forma coerente, como proposto por Geertz (1973). Mas os atores no domínio científico produzem cultura reproduzindo padrôes do sistema ao qual pertencem ao mesmo tempo em que o transformam. Isto porque os esquemas e os recursos podem ser apropriados de diferentes formas e, além disto, sempre há a possibilidade de que esquemas e recursos de outras estruturas culturais interfiram na cultura científica ou essa nas demais. Ou seja, ao considerarmos que recursos sao governados por dinámicas outras para além daquelas recebidas da implementaçao de determinado esquema, pode-se pensar que recursos têm o poder de alterar os padrôes culturais da ciência. Isto ocorreria quando, por exemplo, os esquemas dos cientistas precisam ser alterados para abarcar novos conteúdos empíricos, que no caso das ciências sao um importante tipo de recurso.
Na cultura científica, esquemas estao presentes em todo tipo de atividade que visa resolver problemas de natureza prática ou teórica. Por exemplo, existem estratégias de soluçao de problemas tipos (ou "exemplares", segundo Kuhn2) que sao esquemas próprios dos físicos. Assim como o uso de abordagens estatísticas sao esquemas próprios de um físico experimental lidando com muitos dados. De certo modo, esquemas se vinculam à dimensao cognitiva, mas também aos valores e às metas a serem atingidos como, por exemplo, a busca pelo aperfeiçoamento e pela ampliaçao do conhecimento. Já os recursos se definem pelo fato de "empoderarem" os atores de uma dada comunidade. Podem ser considerados recursos na física as teorias, leis, princípios, conceitos, bem como artigos, livros, equipamentos de medida, instalaçôes físicas, computadores, etc. Além desses, também podem ser considerados como recursos os alunos de pôs-graduaçao e iniciaçao científica, técnicos de laboratório, gestores científicos, entre outros.
No presente estudo estamos particularmente interessados nas entidades científicas que fazem parte de teorias, como elétrons, campos, quarks e outras. Essas entidades povoam o mundo da física, sendo consideradas como aspectos do mundo em uma interpretaçao realista (Dutra, 1998; Tiercelin, 1999). Mas elas também representam recursos da estrutura cultural da ciência e, como tal, estariam sujeitas àquilo que Sewell caracterizou acerca dos recursos de estruturas culturais de modo geral.
CARACTERIZAÇAO DO ESTUDO DESENVOLVIDO
O presente trabalho é baseado em uma pesquisa que entre seus objetivos buscava investigar como estudantes de licenciatura em física incorporam certos aspectos da cultura científica nas formas que usam para caracterizar a realidade de entidades da ciência (Marineli, 2016). Como já dissemos, podemos pensar as diferentes formas de conceber o mundo, tanto a que vêm da ciência quanto as de outras caracterizaçôes da realidade, por meio de uma noçao pluralista da cultura, que nos auxilia a interpretar essas diferenças em virtude da existência de diferentes sistemas culturais. Nessa perspectiva, os sistemas estao parcialmente sobrepostos, cada um deles possuindo certo grau de influência sobre os indivíduos. A ciência, considerada como cultura, coexiste com outras estruturas culturais, cada uma delas com características próprias e nao necessariamente concebendo o mundo da mesma maneira.
Pelo fato de existir em qualquer campo da vida social múltiplos sistemas culturais que se sobrepöem e interpenetram (Sewell, 2005), sempre há o risco de haver interferencias e relaçoes nos momentos em que sao colocados em prática. Tobin e Ritchie enfatizam essa ideia usando o conceito de "campos culturais" (perspectiva vinda das ideias de Bourdieu):
"À medida que indivíduos conduzem sua vida social, eles enatuam3 cultura em campos, compostos por estruturas, incluindo atores e o que eles fazem. Campos nao possuem fronteiras e, como resultado, se interpenetram. Neste sentido, estruturas emanam de campos específicos e se tornam recursos para a açao em outros campos."(Tobin & Ritchie, 2012, p.118, traduçao nossa).
Nessa perspectiva, podemos considerar que esquemas e recursos de outros sistemas culturais podem entrar em jogo nos momentos de incorporaçao e uso dos artefatos da cultura científica. Desse modo, em relaçao às entidades caracterizadas pela ciência, elas também podem ser apreendidas sofrendo influência de outros sistemas culturais, que, por sua vez, contém recursos e esquemas próprios.
A ciência povoa o mundo com uma série de entidades, que surgem como produto das suas investigaçoes, relacionadas aos esquemas científicos. Ao mesmo tempo, podemos considerar que outras estruturas culturais, como as religiosas ou as da vida cotidiana, também possuem seus esquemas e recursos. Apesar de cada uma dessas estruturas possuir características próprias, diferentes das características das demais, para os indivíduos nao existem fronteiras claras entre elas, uma vez que as pessoas vivem imersas em várias estruturas culturais que se sobrepöem. Sewell (2005) descreve essa ideia por meio de exemplo onde um suposto engenheiro químico bengali que vive e trabalha em Houston, nos Estados Unidos. Esse indivíduo participaria simultaneamente da cultura bengali, da cultura da cidade/país em que está vivendo e da cultura técnico/científica internacional da profissao que exerce. Cada um desses sistemas ou estruturas culturais possui suas próprias especificidades, bem como formas particulares de atribuir significados às coisas, sem possuírem fronteiras (geográficas e sociológicas) claras. Nesse sentido, a ideia de estrutura cultural pode ser utilizada para o entendimento das diferentes arenas ou esferas das práticas sociais, que possuem várias formas de interligaçao e sobreposiçao, interpenetrando-se no espaço e no tempo, com todas as consequentes instabilidades, contradiçoes, lacunas e fissuras. Isso nos leva a pensar que a aprendizagem da ciência se dá com os estudantes imersos em várias estruturas, recebendo influências diversas além daquela que vem da cultura científica aprendida nas instituiçoes de ensino. Assim, aprender ciências, tanto para estudantes na escola básica, quanto para futuros cientistas ou futuros professores de ciências, envolveria também aprender a estabelecer contraposiçoes e limites de validade entre os diversos esquemas e recursos das diferentes estruturas culturáis com as quais eles têm contato. Embora seja impossível, e mesmo indesejável, estabelecer fronteiras rígidas entre as diversas culturas que o estudante participa, tomar consciência e ser capaz de estabelecer conexöes e contraposiçôes entre elas pode melhorar a forma de se relacionar com essas diversas estruturas culturais, bem como contribuir para que elas sejam entendidas em seus próprios termos.
Em trabalho anterior (Marineli & Pietrocola, 2010) apresentamos resultados de uma pesquisa exploratória, que visava caracterizar os critérios utilizados por alunos de licenciatura em física para definir a realidade de entidades científicas, bem como de entes4 que compöe outros sistemas culturais. Baseando-se em parte naquele nosso trabalho, a presente pesquisa também buscou investigar aspectos do entendimento dos estudantes em relaçâo a aspectos ontológicos e epistemológicos da ciência, procurando compreender como elementos da estrutura cultural da ciência e de outras estruturas culturais aparecem nos critérios utilizados pelos estudantes para atribuir realidade a entes/entidades oriundos de diferentes contextos culturais dos quais participam.
Utilizando um questionário, adaptado do questionário utilizado no trabalho de 2010, solicitamos a alguns licenciandos que atribuíssem uma "intensidade da realidade" a entes/entidades pertencentes a très contextos culturais: da ciência, do cotidiano e religioso5. Levamos em consideraçâo que um estudante de ciência está imerso, em maior ou menor grau, nesses très contextos.
Ao falarmos dos très contextos culturais, estamos nos referindo a uma delimitaçâo feita por nós, de antemâo, a respeito dos ámbitos que estâo mais fortemente relacionados aos entes e entidades utilizados no questionário e que lhes dariam sentido. Esses contextos seriam, ainda, os "locais sociais" em que haveria um contato mais específico com esses entes ou entidades. Também estamos considerando que esses contextos podem ser caracterizados por estilos cognitivos específicos (Schutz, 1962), que definem significados e modos de experiência próprios. A ideia de estilo cognitivo mantém certa proximidade com a noçâo de esquemas de açâo de Sewell e nos auxilia a agrupar, sob o "guarda-chuva" desses estilos, estruturas culturais que possuem proximidade e, dessa maneira, tratar o conjunto como pertencente a um único campo de significaçâo. Ou seja, os estilos formam grandes molduras cognitivas que representam esses campos. Mas diferente da ideia de Schutz que aborda esses diferentes campos sob a ótica da experiência individual e de diferentes tensöes na consciência, consideramos que a materializaçâo desses campos nas práticas sociais, e as formas de relaçâo entre eles, tem nos esquemas de açâo e recursos de Sewell uma caracterizaçâo mais consistente.
O questionário da presente pesquisa foi respondido por estudantes de licenciatura em física da Universidade de Sâo Paulo. As respostas dos alunos foram feitas por meio de uma escala Likert, usada como forma de atribuir intensidades de realidade aos entes/entidades elencados no questionário e, além disso, deveria ser apresentada uma justificativa para a intensidade escolhida. A escala continha 5 níveis, especificados no Quadro 1 a seguir:
Os entes/entidades foram dispostos no questionário em ordem alfabética. Eles sao apresentados no Quadro 2 a seguir, separados por contexto.
Esse questionário foi aplicado no 2° semestre de 2013, respondido por 23 licenciandos. Todos estavam há pelo menos très anos e meio na graduaçao e cursavam diferentes disciplinas no Instituto de Física da USP. Os questionários foram aplicados pelos professores que ministravam essas disciplinas. Todos os estudantes dessas disciplinas foram convidados a responder ao questionário, sendo que esses 23 aceitaram.
RESULTADOS DA ANÁLISE DO QUESTIONÁRIO
Apresentamos aqui a análise das justificativas dadas pelos estudantes para atribuir realidade aos entes/entidades dos diferentes contextos. O resultado das atribuiçôes de intensidades de realidade será utilizado quando considerarmos que constituem fator relevante para o entendimento das justificativas apresentadas pelos estudantes.
Para a análise das respostas, foi realizada uma Análise de Conteúdo (Bardin, 2011;Moraes, 1999), que permitiu agrupar as justificativas dos estudantes em nove categorias, estabelecidas por meio dos próprios dados, embora tenham tido como ponto de partida nosso trabalho anterior (Marineli & Pietrocola, 2010). As categorias representam uma síntese das justificativas apresentadas pelos licenciandos e destacam aspectos importantes das suas respostas.
Como instrumento auxiliar da pesquisa foi utilizado um software para análise de dados qualitativos chamado Atlas.ti. Esse tipo de software é conhecido como CAQDAS (computer assisted qualitative data analysis software ou softwares de apoio a análise de dados qualitativos) e auxilia na organizaçao e gerenciamento das informaçôes, facilitando o desenvolvimento das análises6.
Definimos como unidade de análise toda a frase das justificativas dadas pelos estudantes, já que essas frases possuíam um significado completo a respeito do critério que o estudante declarou utilizar para atribuir realidade ao ente ou entidade correspondente. E definimos a unidade de contexto como aquilo que chamamos de contexto cultural do ente ou entidade (cotidiano, religioso ou científico), conforme Quadro 2 acima. Para a categorizaçao, utilizamos como critério os temas que apareceram nas justificativas e deles foram elaboradas as categorias. Isso se deu em um processo que envolveu várias leituras do material e muitas reelaboraçôes das categorias, buscando, da melhor forma possível, que elas fossem válidas, exaustivas e homogéneas (Moraes, 1999). Consideramos que o formato final cumpriu esses requisitos. A classificaçao de cada frase se deu em somente uma categoria e, considerando totalidade das frases, buscou-se classificá-las de maneira consistente, sob os mesmos critérios para todo o conjunto.
As categorías definidas no trabalho foram as seguintes:
Categoría A - Conhecimento pessoal: As justificativas aquí categorizadas relacionam a realidade ao que se sabe ou se entende do ente/entidade, expressando certa dependência entre o conhecimento ou a inteligibilidade do ente/entidade e a intensidade de realidade a ele atribuída. A maioria das justificativas aqui categorizadas alegava desconhecimento do ente/entidade. Como exemplos, temos: "adquiri muita familiaridade com esse objeto que considero real", "nao sei o que é isso", "nao sei se é real ou nao", "nao tenho certeza".
Categoría B - Conhecimento geral: Foram aqui agrupadas as justificativas que relacionam a intensidade de realidade atribuída a um entendimento coletivo sobre o ente/entidade. A atribuiçao de realidade se apoia no referendo de algo ou alguém. Entre as justificativas aqui categorizadas aparecem expressöes como: "demonstrado empiricamente", "só falta a prova", "a ideia já foi demonstrada errada".
Categoría C - Realidade definida por meio de crença ou existência: Nessa categoria foram agrupadas as respostas que justificavam o ente/entidade por meio de crença, sustentando que se tratava de um elemento imaginário ou apenas afirmando sua existência/inexistência. Como exemplos dessas respostas, temos: "seres imaginários", "creio, logo existe", "nao existe".
Categoría D - Realidade definida por meio de uma relaçâo direta entre pessoas e o ente/entidade: Agrupa justificativas que expressam que a realidade de algo é atestada pela percepçao ou interaçao com o ente, que realmente ocorre ou que em tese é possível que ocorra. A percepçao pode ser por meio dos sentidos ou percepçôes subjetivas. Exemplos: "perceptível pelos nossos sentidos", "posso tocar", "nao vemos nem sentimos".
Categoría E - Realidade definida por meio de uma relaçâo entre um aparelho e o ente/entidade: As justificativas aqui categorizadas afirmam que a realidade de algo é justificada por meio de sua detecçao, mediçao ou percepçao utilizando aparelhos ou experimentos. Entre as justificativas aqui categorizadas, temos: "algo observado através de experimentaçao", "detectável", "é possível medir".
Categoría F - Realidade definida por meio da detecçâo ou percepçâo de efeitos: Justificativas se baseiam na percepçao ou detecçao de um efeito que é atribuído ao ente, ou seja, por meio do efeito se avalia a realidade dele7. Exemplos: "Detectamos os efeitos, mas nao é algo que compreendemos por completo o que é", "vemos seus efeitos".
Categoria G - Realidade definida por alguma caracterizaçâo que envolve teoria: As respostas aqui tinham em comum justificar a realidade do ente/entidade por meio de alguma caracterizaçâo que envolve uma noçao teórica, como uma mençao direta a teoria ou modelo ou expressando que a existência do ente/entidade em questao deve ser real para poder explicar algum outro fenómeno. Como exemplos, destacamos: "modelo científico", "elemento que faz parte de uma teoria", "Representa e explica bem as partículas como prótons e nêutrons" [para o quark].
Categoria H - Realidade definida por outro ente/entidade considerado real: Nessa categoria a realidade de algo é justificada pela existência de outro ente/entidade que faria com que o primeiro também fosse real ou nao. Exemplos: "cargas em movimento" [para corrente elétrica], "termo que identifica a matéria do dia a dia" [para cadeira], "A cor que vemos é a luz refletida".
Categoría I - Outras: justificativas que nao se encaixaram nas demais categorias.
A distribuiçao das justificativas dadas pelos alunos nas diversas categorias encontram-se no Quadro 3, a seguir, em valores percentuais. Trabalhamos com os dados separados por suas unidades de contexto. Cabe mencionar que as contagens dos itens que aparecem nas tabelas foram feitas nao somente por meio do software Atlas.ti, mas também utilizando planilhas eletrônicas para a realizaçao de alguns cálculos, quando necessários.
Ao verificarmos a distribuiçâo de respostas nas várias categorias, vemos que apareceram concentraçôes diferentes em relaçâo aos itens dos très contextos culturais. Esta primeira análise parece mostrar que os contextos sâo epistemologicamente diferentes para os alunos que responderam ao questionário. No caso dos entes que classificamos como fazendo parte do contexto cotidiano, mais de 75% das justificativas puderam ser classificadas na Categoria D, "relaçâo direta pessoa-ente/entidade". Neste caso, a realidade dos itens era majoritariamente justificada por meio de uma relaçâo direta entre o ente e a pessoa, seja essa pessoa o próprio respondente ou outra em abstrato. Aqui temos uma caracterizaçâo razoavelmente clara do critério usado para definir a realidade de algo. Esse resultado já era esperado, uma vez que "naturalmente" se reconhece as coisas no dia-a-dia por meio dos sentidos, é por meio deles que lidamos com a maioria das situaçôes no contexto cotidiano. A facticidade da realidade cotidiana, que percebemos e nos relacionamos, faz com que os entes a ela relacionados sejam considerados reais. Nas respostas dos estudantes para a intensidade de realidade, os entes do cotidiano foram majoritariamente assinalados com intensidade de realidade 5 (totalmente real), quase 80% das vezes.
Nos itens classificados no contexto religioso houve também uma significativa predominância de certo tipo de justificativa. Mais de 55% delas foram classificadas na Categoria C, "crença ou existência". Era afirmado que algo existia ou nâo sem que fossem apresentadas justificativas, ou simplesmente por se acreditar ou nâo. Sobre a intensidade de realidade dos entes que aparecem neste contexto, houve o predominio de respostas que assinalam baixa intensidade de realidade, com 50,7% delas assinalando intensidade de realidade 1 (totalmente nâo-real). Além disso, cabe apontar que a maioria das justificativas estava nessa categoria independentemente do nivel de realidade atribuido, o que mostra ser esse um tipo predominante de resposta, independente do ente ser ou nâo considerado real. Em certo sentido, essa categoria possui relaçâo com a Categoria B, "conhecimento geral", ambas sendo categorias de ordem dogmática, uma vez que nelas nâo parece haver uma preocupaçâo em definir meios/métodos/processos como possiveis formas de justificar a existência de algo. No caso da categoria B, era afirmado que a existência ou inexistência é sabida por algum meio. Se considerarmos as respostas nas duas categorias (B + C), temos quase dois terços do total (55,8% + 7,2% = 63%). Ainda no contexto religioso, as respostas classificadas na Categoria D (12,3%) apresentavam justificativas que, na maioria das vezes, eram relacionadas à ausência de percepçâo das entidades desse dominio.
Finalmente, no caso das entidades que classificamos como fazendo parte do contexto científico, também houve um tipo de justificativa que foi utilizado mais vezes: as justificativas classificadas na Categoria G, que recorrem à dimensâo teórica da ciência, foram as mais utilizadas pelos alunos (32,7%). No entanto, essa categoria nâo se destaca das demais como nos casos dos contextos cotidiano e religioso, o que mostra haver uma particularidade desse contexto. Mais variadas que aquelas do contexto religioso e muito mais variadas que as do contexto cotidiano, a dispersâo nas justificativas dadas pelos estudantes para justificar a realidade (ou nâo) no contexto cientifico mostra que esses estudantes possuem formas menos homogêneas de justificar a existência de entidades na ciência. Em relaçâo à intensidade de realidade, 60,9% das respostas indicaram intensidade de realidade 4 (mais real do que nao-real) ou 5 (totalmente real).
Como já dissemos, no contexto religioso temos que a maioria das justificativas associadas às respostas que indicaram intensidade de realidade alta (4 ou 5) sao do mesmo tipo das que aparecem como majoritárias para todo o conjunto (intensidade de 1 a 5). Ou seja, mesmo fazendo um recorte apenas das respostas que consideram as entidades "mais reais", as justificativas utilizadas sao, na maioria das vezes, de mesma natureza daquelas que aparecem nas respostas que consideram os entes "menos reais" (predominando a Categoria C). No caso do contexto cotidiano, quase todas as respostas dos estudantes indicaram intensidade de realidade alta (4 ou 5), mas mesmo naquelas poucas respostas que indicaram intensidade de realidade menor, as justificativas também eram da mesma natureza das que apareceram majoritariamente nas respostas que assinalaram intensidade de realidade alta (Categoria D). De maneira geral, pode-se inferir que existe um padrao na forma de conceber a realidade dos entes que pertencem a esses dois contextos, neles sendo possível lidar com mais segurança sobre a existência ou nao de algo, havendo critérios mais canónicos e aparentemente com validade ampla.
No entanto, no caso do contexto científico a situaçao é diferente. Quando fazemos um recorte somente das respostas que indicam intensidade de realidade alta (4 e 5), aparece uma distribuiçao de justificativas diferente da apresentada pelas respostas que indicam realidade baixa (1 e 2). O quadro 4 a seguir apresenta esses dados, em valores absolutos8. Isso indica que os critérios usados para justificar porque uma entidade seria real nao foram os mesmos usados para justificar porque ela nao seria.
Para as entidades assinaladas com intensidades baixas (intensidade 1 ou 2), 44 justificativas (quase 56% do total), foram classificadas na categoria G, "Realidade definida por alguma caracterizaçao que envolve teoria", sendo esta a categoria majoritária. Para os itens assinalados com intensidades altas (4 ou 5), mais de 52 justificativas (18,1%) foram classificadas na Categoria D, 51 justificativas (17,8%) na Categoria E, 45 justificativas (15,7%) na Categoria G e 38 justificativas (13,2%) na Categoria F. Estes resultados demonstram uma distribuiçao mais diversificada das justificativas.
Uma primeira interpretaçao deste resultado seria considerar que isso se deve ao fato de o contexto cientifico congregar diferentes tipos de entidades, desde aquelas que parecem ter uma relaçâo direta conosco (como a gravidade e corrente elétrica, por exemplo), até entidades inobserváveis e com existência virtual (como os quarks). Para verificar se essa interpretaçao é correta, apresentamos no Quadro 5 a seguir as justificativas para os itens da ciência assinalados com intensidades de realidade altas, separando as justificativas para algumas entidades inobserváveis do total de justificativas. Na coluna 2 sao apresentadas as justificativas para o total de itens da ciência e na coluna 3 apenas para algumas entidades inobserváveis que sao consideradas "reais" pelas teorias vigentes (átomo, campo elétrico, campo gravitacional, elétron, fóton e quark).
Como pode ser visto no quadro acima, isolar os inobserváveis das demais entidades nao altera significativamente a distribuiçao das justificativas nas nove categorias. Percebe-se que as justificativas para definiçao de realidade das entidades inobserváveis, em comparaçao com as justificativas para todo o conjunto de entidades da ciência, possuem uma maior porcentagem nas categorias E ("Realidade definida por meio de uma relaçâo entre um aparelho e o ente/entidade") e G ("Realidade definida por alguma caracterizaçao que envolve teoria") e uma diminuiçâo na porcentagem daquelas na categoria D ("Realidade definida por meio de uma relaçao direta entre pessoas e o ente/entidade").
Apenas para confirmar a tendência de justificativas que se valem de teorias e/ou aparelhos para lidar com a realidade de entidades inobserváveis, buscamos os dados das respostas que indicaram baixa intensidade de realidade (1 e 2)9. Também neste caso, a grande maioria das justificativas se concentrou na categoria G, "Realidade definida por alguma caracterizaçao que envolve teoria" (62,5%). Esse valor é pouco maior em comparaçâo ao conjunto de entidades da ciência (55%).
DISCUSSÖES E INTERPRETAÇÔES A RESPEITO DOS RESULTADOS DO QUESTIONÁRIO
Para Bardin (2011), uma especificidade da Análise de Conteúdo reside na possibilidade de articulaçâo entre a superficie dos textos, descrita e analisada, e os fatores que determinam suas características. No caso das respostas que obtivemos com o questionário, para realizar esse tipo de articulaçao retomaremos as noçôes de esquemas e recursos nos très contextos culturáis estudados, que auxiliarao nas interpretaçôes e inferências relacionadas ao que foi obtido por meio do processo de categorizaçao.
As entidades científicas que compuseram o questionário sao elementos que constituem a ontologia do mundo na perspectiva científica. No entanto, no questionário há também entidades ligadas à ciência, mas que nao fazem parte de sua ontologia atual, como é o caso do calórico. Estas entidades nao seriam consideradas "reais" pelos cientistas atuais, em qualquer uso que o termo "real" possa ter para eles. No entanto, do ponto de vista da definiçao de cultura que adotamos, todas as entidades presentes no questionário, sendo ou nao validadas pela ciência atual, sao recursos usados nos esquemas da cultura científica, de hoje ou do passado. Esses recursos dao (ou davam) poder ao cientista na prospecçao e na elaboraçao de explicaçôes e na previsao de resultados sobre o mundo físico.
Da mesma forma, no contexto religioso os entes do questionário também podem ser considerados recursos no uso de esquemas que permitem gerar explicaçôes sobre o mundo, explicaçôes a respeito de experiências pessoais, regras de conduta dos membros de uma comunidade religiosa etc.
Já em relaçao ao contexto cotidiano, os entes do mundo que aparecem no questionário podem ou nao serem recursos de estruturas culturais. Tomemos como exemplo uma pedra num deserto, que pode ser somente um objeto inerte e sem funçao ou pode se tornar uma arma na mao de uma pessoa que precise se defender de um animal. Sao os esquemas que fazem do objeto um recurso. Ou seja, no mundo cotidiano a relaçao recurso/esquema precisa de algum modo ser construída no momento da açao, diferentemente do que acontece no contexto religioso ou científico, onde recursos e esquemas muitas vezes estao previamente definidos.
Nas respostas dos licenciandos ao questionário, a justificativa predominante para os entes do cotidiano foi justamente a que caracterizava a realidade por meio de uma relaçao direta com as pessoas (Categoria D). Apesar da possibilidade desses entes adquirirem diferentes funçôes/papéis - como foi dito, até objetos ordinários podem ser recursos dentro de determinadas estruturas culturais -, é de se esperar que isso seja um elemento secundário frente à percepçao direta. Este resultado merece destaque, pois os entes com os quais nos relacionamos no dia a dia, por possuírem uma relaçao direta com os nossos sentidos, muitas vezes sao tratados de forma auto evidente, implicando numa concepçao naturalizada deles e do mundo cotidiano (Schutz, 1962). Dessa forma, os possíveis papéis que esses entes podem assumir em diferentes esquemas podem ficar eclipsados pelo destaque dessa auto evidência e pelas formas mais comuns pelas quais eles sao tratados. Schutz coloca que um dos atributos da realidade do dia a dia é que nela se dá uma espécie de "suspensao da dúvida" em relaçao aos objetos e que essa é uma característica do estilo cognitivo da realidade cotidiana, que, junto com outras características, faz com que seja chamada de "realidade suprema" (Schutz, 1962).
No contexto religioso, as justificativas dos estudantes apareceram majoritariamente na Categoria C, "crença ou existência". Entendemos que considerar os entes do contexto religioso - recursos da estrutura cultural da religiao - como reais por meio da crença ou de afirmaçôes de existência tem relaçao com os esquemas culturais religiosos que, de um modo geral, sao constituídos por dogmas e muitas vezes possuem a noçao da existência de uma divindade ou de outros entes como uma premissa básica. Mas até as justificativas de estudantes que nao consideravam reais os entes desse contexto - que os assinalaram com baixa intensidade de realidade - também foram classificadas na categoria "crença ou existência". No entanto, de maneira diferente daquela que usa a crença para afirmar a realidade de um ente desse contexto, nesse caso a crença é usada como critério de negaçao dele, o que pode estar ocorrendo por duas razôes: ou pela negaçao de um ente específico, considerando que ele nao é um recurso válido, ou seja, que ele nao faz parte de uma ontologia religiosa específica; ou, em um aspecto mais amplo, pela negaçao dos esquemas relacionados à estrutura cultural religiosa. Nesse segundo caso, os esquemas desse domínio (incluindo a crença) nao forneceriam um critério convincente de justificaçao de realidade dos entes. Como exemplos de justificativas que se encaixam nesse caso que nega a realidade dos entes utilizando a crença, os alunos usaram expressôes como "crença religiosa", "fé, crença", "criaçao da religiao", "nao acredito". Um último ponto a ser destacado é que parte das respostas também negava a existência das entidades do contexto religioso baseando-se na ausência de percepçao delas. Aqui, parece haver uma influência da realidade do mundo cotidiano na definiçao da realidade do mundo da religiao. Este tipo de primazia do mundo cotidiano sobre outros mundos (ou do contexto cultural do cotidiano sobre outros contextos culturais) pode ser relacionado novamente com as ideias de Schutz sobre a realidade cotidiana ser percebida como uma "realidade suprema". Isso faria com que seus esquemas fossem usados para avaliar os recursos de outra estrutura cultural, no caso os entes religiosos.
Indo um pouco mais longe nessa interpretaçao, inclusive podemos considerar que isso explica também a negaçao dos esquemas religiosos (baseados na crença), uma vez que certos esquemas cotidianos seriam fortes a ponto de também negar esquemas de outras estruturas. No entanto, nesse segundo caso, nao temos como saber exatamente se sao os esquemas do cotidiano, ou outros, que levam a essa negaçao.
Em relaçao às entidades do dominio científico, constatamos uma maior variedade nas respostas dadas pelos estudantes para justificar sua realidade. A primeira implicaçao deste resultado é que as entidades do contexto cultural da ciência sao tratadas de forma diferente dos entes dos outros dois contextos (Quadro 3). Essa maior variedade pode ser indicio de que nao há tanta clareza sobre os critérios para definir a existência daquilo que compöe o dominio científico. No entanto, mais da metade das respostas encontram-se nas categorias que envolvem de algum modo o uso de teoria (E, F e G, ver Quadro 3). As teorias na ciência sao estruturas conceituais nas quais se encontram os esquemas mais fortes e paradigmáticos. A prospecçao do mundo por meio de aparelhos de mediçao ou detecçao envolve o uso de teorias10 e é um esquema comum, uma forma de açao própria e característica dos cientistas. Além disso, inferir a existência de uma entidade por meio de um efeito que lhe é atribuido, ou mesmo considerar algo real usando mençôes mais explícitas a relaçôes teóricas, também diz respeito a esquemas da ciência, que possui nas teorizaçôes sua forma básica de açao. Ou seja, do ponto de vista científico, os alunos acertam nesses casos ao eleger tais categorias como justificativas válidas para definir a realidade de entidades científicas.
No entanto, quando separamos as justificativas apresentadas nas respostas que indicavam baixa intensidade de realidade daquelas com alta intensidade de realidade (Quadro 4), aparece um padrao diferente para ambas. No caso das respostas indicando baixa intensidade de realidade para as entidades científicas, há uma mençao direta a teorizaçôes (Categoria G) 44 vezes, o que representa 56% das justificativas, aproximadamente. Já nas respostas indicando alta intensidade, o número de justificativas nesta categoria cai bastante proporcionalmente, representando apenas 15,7% do total. Aparecem outras justificativas com porcentagem semelhante: Categoria D, "relaçao direta pessoa-ente/entidade", com 18,1%; Categoria E, "relaçao aparelho-ente/entidade", com 17,8%; e Categoria F, "detecçao de efeitos", com 13,2%. Assim, o esquema científico "teorizaçao" está bastante presente nas respostas dos alunos, mas muitas vezes ele é utilizado para rejeitar a realidade dos recursos (ou entidades), ou seja, para afirmar que eles nao fazem parte do mundo. É como se o processo de teorizaçao ou modelizaçao nao servisse para indicar a realidade da entidade, mas sim para negá-la. Isso seria uma espécie de negaçao da própria validade desses processos como fatores de caracterizaçao de realidade das entidades. Já para afirmar a realidade das entidades, cerca de 2/3 das justificativas se distribuem nas quatro categorias mencionadas acima (D, E, F e G).
Outro aspecto importante é que as justificativas baseadas em "detecçao" ou "percepçao" (categorias D, E e F) aparecem com predominância, inclusive quando consideramos somente as entidades inobserváveis átomo, campo elétrico, campo gravitacional, elétron, fóton e quark (ver quadro 5). Nas justificativas utilizadas pelos estudantes categorizadas em E, "relaçao aparelho-ente/entidade", muitas vezes eram usadas expressôes do tipo "detectável", "mensurável", "observado", "perceptível por experimentos", "visto por técnicas". E isso apesar de as entidades serem inobserváveis, o que pode estar indicando que há uma ideia de acesso direto por meio da utilizaçao de um aparelho, mesmo no caso de entidades que, por definiçao, sao nao-observáveis.
As entidades inobserváveis da ciência, diferente da pedra que foi usada em exemplo anterior, sao sempre recursos dentro da estrutura cultural científica. Mesmo considerando que elas existem no mundo da ciência como a pedra existe no mundo cotidiano, o acesso do cientista a elas nunca é direto, mas se dá somente por meio de esquemas científicos pré-definidos. Assim, podemos ter duas possíveis leituras das respostas dos licenciandos neste semigrupo de respostas.
A) Em uma primeira leitura os estudantes reconheceriam os esquemas da ciência dentro do seu ámbito, entendendo que sao esses esquemas que dao suporte para atribuir realidade às entidades. Nesse sentido, os estudantes entenderiam que a experimentaçao e detecçao científicas estao carregadas de teorias, que as entidades nao sao simplesmente observadas no mundo; que um efeito detectado somente é atribuído a um ente (e explicado por seu intermédio) por meio de teorizaçôes; que as definiçôes e modelos teóricos sao instrumentos importantes de caracterizaçao do mundo. E que, mesmo assim, é possível defender a realidade das entidades da ciência.
B) Em uma segunda interpretaçao, os estudantes considerariam que a experimentaçao ou detecçao científicas se dao somente como uma ampliaçao dos sentidos e que seria possível perceber diretamente coisas nao percebidas sem eles; que a atribuiçao de um efeito detectado a uma entidade inobservável seria como perceber uma característica de um objeto macroscópico, podendo, dessa maneira, ser estabelecido um vínculo de forma direta. Ao se considerar que equipamentos permitem esse "acesso direto" às entidades, a utilizaçao de teorizaçôes e modelos, apesar de empregados na ciência, seriam maneiras "menos válidas" de caracterizar o mundo (o que foi usado muitas vezes para justificar a baixa intensidade de realidade de entidades). Nesta segunda leitura, faz sentido as respostas se apoiarem em uma relaçao direta pessoa-ente/entidade - até para os inobserváveis -, uma vez que essa relaçao seria possível assim como a relaçao direta com os objetos cotidianos. E essa segunda forma de interpretarmos as ideias dos estudantes permite, ainda, relacionarmos a noçao deles sobre o contexto científico com esquemas vindos de estruturas culturais do cotidiano, o que caracterizaria uma forma de realismo ingênuo.
Claramente a primeira leitura seria muito próxima da maneira como os filósofos consideram o meio de produçao/acesso das/às entidades científicas, mesmo que muitas vezes os próprios cientistas nao tenham tanta clareza sobre este processo de mediaçao por meio de teorias (ver Kuhn, Lakatos, Bachelard entre outros). A segunda leitura seria como se houvesse a extrapolaçao da epistemologia do contexto cotidiano para o contexto da ciência. A ideia de ampliaçâo dos sentidos por meios dos aparelhos rejeita o papel desempenhado pelas teorias e adota uma epistemologia própria do contexto cotidiano para lidar com as entidades científicas. Essa segunda leitura explicaria também a negaçao dos esquemas de teorizaçao ou modelizaçao, o que foi observado em algumas respostas, considerando que os esquemas vindos da estrutura cotidiana seriam proeminentes a ponto de serem entendidos como únicos e, com isso, levarem à negaçao dos esquemas da ciência.
O que nos parece provável é que ambas as leituras dos dados sejam verdadeiras e que haja uma superposiçao de critérios usados pelos estudantes, sem haver uma coerência forte em termos dos entes e entidades de um mesmo contexto cultural. Considerando que a cultura é um sistema formado por estruturas que se sobrepôem e que mantêm uma coerência fina, lógica aberta e bordas nao totalmente delimitadas (Sewell, 2005), podemos admitir que os contextos culturais da ciência e aquele que vem do senso comum se sobreponham, assim como o contexto religioso e cotidiano, e isso apareça nos critérios usados pelos estudantes para responder ao questionário. No entanto, cabe mencionar que nao obtivemos evidências que mostrassem uma superposiçao entre o contexto da ciência e o contexto religioso, o que pode ser resultado do local e da amostra que tomamos.
Embora as entidades científicas sejam parte do conjunto de recursos que, juntamente com os esquemas da ciência, habilitam os físicos no exercício de suas práticas, essas entidades podem ser apreendidas pelos estudantes sofrendo influência de outras estruturas culturais, com seus recursos e esquemas próprios. Sewell (2005) considera que, pelo fato de existir em qualquer campo da vida social múltiplos sistemas culturais, existe risco de haver interferência nos momentos em que sao postos em prática.
Assim, as entidades científicas - recursos da estrutura cultural da ciência - também podem tomar parte em outras dinámicas além daquela que recebem da estrutura de origem. Nesse processo, entraria em jogo aquilo que Sewell (2005) caracterizou como transponibilidade de esquemas - que trata da possibilidade da transposiçao dos esquemas de um sistema cultural a outro - e o conceito de polissemia dos recursos - que indica que recursos, apesar de corporificarem esquemas, podem ser interpretados de formas variadas, já que o significado deles nunca é totalmente exato, sem ambiguidade. Ou seja, as justificativas sobre a realidade das entidades da ciência também podem se dar por meio de esquemas diferentes daqueles da estrutura com a qual se relacionavam originalmente, conforme apontamos na interpretaçao que consideramos a existência de uma extrapolaçao da epistemologia do cotidiano para o contexto científico.
Devido ao fato de os estudantes que participaram deste estudo serem licenciandos em física, respondendo ao questionário dentro do ambiente de uma universidade, pensamos que as evidências a respeito da superposiçao de elementos do cotidiano nas justificativas sobre entidades da ciência devem ser mais fortemente consideradas, tendo em vista que esse ambiente deveria, pelo menos em tese, contribuir para inibir essa superposiçao nas respostas. Consideramos razoável pensar que se as respostas tivessem sido dadas por pessoas tomadas aleatoriamente na rua, em um ambiente fora da universidade, os esquemas cotidianos seriam proeminentes. No entanto, mesmo com estudantes de física dentro da universidade isso apareceu, o que nos parece ser algo significativo.
CONSIDERAÇÔES FINAIS
A acepçao de cultura proposta por Sewell (2005), como um conjunto de estruturas que se sobrepöem, cada uma delas constituída por esquemas e recursos, se mostra promissora para analisar aspectos da vida humana. Cultura é aqui considerada como um sistema complexo, com uma coerência fina e repleto de contradiçoes, fazendo dele um campo de disputas com lógica aberta. Os individuos vivem imersos em diferentes estruturas, combinando uma série de elementos que nao podem ser limitados a uma determinada situaçao particular. Símbolos e significados, bem como esquemas e recursos de um sistema cultural, estao localizados de forma sobreposta com os de outros sistemas, o que faz com que diferentes dominios, regras, categorias e sentidos possam potencialmente ser transpostos de uma situaçao para outras.
No presente trabalho a ciência foi caracterizada como uma estrutura cultural, o que consideramos frutífero para compreender a aprendizagem de aspectos dela. Essa aprendizagem se dá com os estudantes imersos em diversas estruturas e influenciados por elas. Dessa forma, a influência da cultura científica aprendida nao é única e pode nao ser a mais proeminente.
Nossa intençao foi realizar uma investigaçao sobre os critérios usados por licenciandos em física para caracterizar a realidade de entidades cientificas e de entes pertencentes a outros domínios da vida social. Olhando de modo geral, vimos que as justificativas dos licenciandos para considerarem algo real variaram de acordo com o contexto cultural "original" do ente ou da entidade. Para os entes cujo contato se dá no ámbito do cotidiano, as justificativas apresentadas se basearam predominantemente na existência de uma relaçao direta com eles, por meio de percepçao ou interaçao, e lhes foram atribuídos altos graus de realidade pela expressiva maioria dos estudantes. Isso era esperado, uma vez que a percepçao por meio dos sentidos é o principal fator de estabelecimento de realidade para os objetos desse domínio. Para os entes cuja filiaçao está em um contexto religioso, houve uma predominância de justificativas ligadas à crença ou afirmaçao sobre existência/nao existência, tanto nas respostas que consideraram os entes reais, quanto naquelas que nao os consideraram. Nesse segundo caso, que foi maioria, a utilizaçao da crença como base das justificativas para a nao existência dos entes pode ser considerada como uma espécie de negaçao dos esquemas pertencentes ao sistema religioso, como se nao se pudesse inferir a realidade de entes por meio desses esquemas.
Já para a realidade das entidades científicas houve maior variedade de justificativas, sendo que a maioria fazia uso de alguma caracterizaçao que envolvia noçoes teóricas. No domínio científico, as investigaçoes utilizam teorias para caracterizar a realidade de entidades. Nesse sentido, em uma primeira leitura, parece haver uma aproximaçao entre as formas pelas quais os estudantes entendem a realidade das entidades da ciência com as formas da própria cultura científica. No entanto, consideraçoes adicionais acerca das justificativas dos estudantes evidenciaram outros aspectos. A primeira é que a variedade observada nos tipos de justificativas pode ser um indicativo de que nao havia tanta clareza acerca dos critérios de caracterizaçao de existência das entidades da ciência. Além disso, outro aspecto a ser levado em conta é que nas respostas que assinalaram intensidade de realidade baixa para as entidades da ciência, a grande maioria das justificativas utilizadas fazia mençao a teorizaçoes; já nas respostas que assinalaram intensidade de realidade alta, as justificativas relacionadas à percepçao e detecçao ganharam mais destaque, inclusive para entidades inobserváveis.
Isso nos levou a propor duas possíveis interpretaçoes: uma delas mais próxima das formas com as quais os filósofos entendem os meios de produçao e acessos às entidades; e uma segunda na qual os critérios utilizados pelos licenciandos para definir a realidade das entidades parecem ser influenciados pelas estruturas culturais próprias do cotidiano e pelo uso de critérios epistemológicos nele presentes. Para essa segunda interpretaçao, nos baseamos nas ideias de Sewell (2005): ainda que os diferentes sistemas culturais possuam suas formas próprias de atribuir significados, o que inclui critérios epistemológicos, sempre há o risco de haver interferências quando os esquemas interpretativos sao postos em açao, já que nao existem fronteiras completamente delimitadas entre os diferentes sistemas culturais de que participamos.
Julgamos razoável considerar que nos casos em que os esquemas científicos (como a teorizaçao) foram utilizados como justificativa para itens assinalados com baixa intensidade de realidade, existe uma espécie de negaçao desses esquemas. Negá-los leva também à negaçao da realidade das entidades da ciência. Entendemos que isso pode ser explicado por meio da consideraçao de que a realidade do cotidiano, chamada por Schutz de "realidade suprema" (Schutz, 1962), influencia fortemente os julgamentos feitos pelas pessoas em geral. Seus critérios de atribuiçao de realidade sao proeminentes, inclusive para os estudantes de física. Isso poderia representar uma tendência de utilizaçao desses critérios de maneira generalizada, até mesmo para o conhecimento científico, em detrimento dos esquemas próprios da ciência. Os esquemas culturais do dia a dia estâo incorporados aos nossos modos de pensar e, com isso, a realidade das entidades acaba por se submeter ao crivo das formas de conhecer que vêm do cotidiano.
Consideramos que a compreensâo dos critérios definidores de existência das entidades da ciência, nos termos próprios da cultura científica, é um aspecto importante para a formaçâo dos licenciandos em ciência em geral e da física em particular. Isso porque um professor, no desenvolvimento de seu trabalho, terá de lidar com entidades inobserváveis que sao parte das teorias científicas. Nesse sentido, o entendimento dos critérios que a ciência usa para caracterizar a existência dessas entidades se mostra um aspecto importante do conhecimento docente, bem como o entendimento de como esses critérios podem ser influenciados por outros parámetros na acepçâo da realidade, vindos de outras estruturas culturais. Uma maior clareza a respeito dos esquemas e recursos do contexto científico permitiria que fossem conhecidas as maneiras pelas quais a ciência define a realidade dessas entidades, assim como permitiria que fossem estabelecidas possíveis relaçôes e contraposiçôes entre os esquemas e recursos de diferentes contextos culturais. Entendemos que a compreensâo dessa dinámica é uma habilidade fundamental para quem vai ensinar ciências.
AGRADECIMENTOS
Fábio Marineli agradece à FAPEG e à CAPES pelo apoio financeiro.
1É importante salientar que esta obra é na verdade uma coletânea de trabalhos produzidos por Sewell nos dez anos anteriores a esta publicaçao.
2 Esse conceito se encontra no posfácio da obra A Estrutura das Revolugoes Científicas(Kuhn, 2005).
3 O termo em inglês é enact. Ele nao possui traduçao direta para o português, mas consideramos que seria adequado utilizar o neologismo enatuaçao. No livro Pesquisa em educaçao: conceituando a bricolagem, de Joe Kincheloe e Kathleen Berry (2007), existe uma nota do tradutor explicando que o neologismo "enaçao" e seus derivados, como o verbo "enatuar", refere-se ao termo em inglês enaction (atuaçao, representaçao), depois traduzido por enacción em espanhol (que também remete a "en acción''). O significado de enaction corresponde a "agir no mundo" em relaçao às condiçoes com que nos deparamos.
4Convencionamos neste trabalho utilizar o termo entidade para os recursos materiais relacionados ao contexto científico e ente para elementos do mundo relacionados a outros contextos culturais.
5Para a escolha dos entes do contexto religioso que foram incluidos no questionário, foi dada ênfase às religiöes mais comuns no Brasil. O último censo demográfico do IBGE apontou que, em 2010, católicos e evangélicos formavam mais de 86% da populaçâo do país (IBGE, 2012).
6A versao utilizada do Atlas.ti foi a 6.1.1. Mais informaçôes sobre esse software podem ser obtidas no site <www.atlasti.com>. Para mais informaçôes sobre CAQDAS, ver Lage (2011 ).
7É importante notar a diferença entre a categoria F e a categoria D. Na categoria F se faz uma inferencia da existência de algo por meio de um efeito que teoricamente é atribuído ao ente. Por exemplo, vejo algo cair e digo que a gravidade é real. No entanto, essa relaçao nao é direta, a gravidade nao é vista diretamente. Se disserem que a veem diretamente, a frase entra na Categoria D. Na F a dimensao inferencial é mais proeminente que a observacional.
8Como esclarecimento em relaçao ao Quadro 4, preferimos apresentar nele os dados em números absolutos porque a quantidade de itens assinalados com 4 e 5 é maior que os assinalados com 1 e 2. Essa diferença ficaria mascarada se apresentássemos os dados em valores percentuais. Neste caso, estamos olhando o mesmo conjunto de itens do questionário nas duas colunas (contexto da ciência), o que nao ocorre nos Quadros 3 e 5, apresentados com dados percentuais.
9Estes dados nao se encontram no Quadro 5.
10Bachelard, em algumas de suas obras, caracteriza a relaçao entre equipamentos e teoria por meio da noçao de fenomenotécnica. Ver Bachelard (1977) e também Pietrocola (2014).
REFERÊNCIAS
Bachelard, G. (1977). O Racionalismo aplicado. Traduçâo de N. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar.
Bardin, L. (2011). Análise de Conteúdo. Traduçâo de L. A. Reto e A.. Sao Paulo: Ediçôes 70.
Carvalho, A. M. P. (2007). Habilidades de professores para promover a enculturaçâo científica. Contexto & Educaçâo, 22(77), 25-49. Recuperado de https://www.revistas.unNui.edu.br/index.php/contextoeducacao/article/view/1084/839
Driver, R., Asoko, H., Leach, J., Mortimer, E., & Scott, P. (1999). Construindo conhecimento científico na sala de aula. Química Nova na Escola, 9, 31-40. Recuperado de http://qnesc.sbq.org.br/online/qnesc09/aluno.pdf
Dutra, L. H. A. (1998). Introduçao à Teoria da Ciência. Florianópolis: Editora da UFSC.
Geertz, C. (1973). The Interpretation of Cultures: Selected Essays.New York: Basic.
Giddens, A. (2009). A constituiçao da sociedade. (3a ed.) Cabral. Sao Paulo: Editora WMF Martins Fontes.
IBGE. (2012). Censo demográfico 2010: características gerais da populaçao, religiäo e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: IBGE. Recuperado de http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd 2010 religiao deficiencia.pdf
Kincheloe, J. L., & Barry, K. S. (2007). Pesquisa em educaçâo: conceituando a bricolagem. Traduçâo de R. C. Costa. Porto Alegre: Artmed.
Kuhn, T. (2005). Posfácio - 1969. In: Kuhn, T. A estrutura das revoluçôes científicas. (9a ed.) Sâo Paulo: Perspectiva.
Lage, M.C. (2011). Os softwares tipo CAQDAS e a sua contribuiçâo para a pesquisa qualitativa em educaçâo. ETD: Educaçâo Temática Digital, 12(2), 42-58. Recuperado de http://basessibi.c3sl.ufpr.br/brapci/ repositorio/2011/06/pdf b8a40a2dcc 0017347.pdf
Macedo, B.& Katzkowicz, R. (2003). Educaçâo científica: sim, mas qual e como? In Sasson, A. et al. (Orgs.). Cultura científica: um direito de todos. Brasília: UNESCO, p. 67-86.
Marineli, F. (2016). A realidade das entidades científicas e a formaçao de professores de física: uma análise sociocultural. (Tese de Doutorado em Educaçao. Universidade de Sao Paulo, Sao Paulo). Recuperado de http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-29042016- 132736/pt-br.php
Marineli, F., & Pietrocola, M. (2010). Um estudo exploratório sobre critérios de atribuiçao de realidade utilizados por estudantes de física: construindo categorias de análise. In: XII Encontró de Pesquisa em Ensino de Física (EPEF). Águas de Lindóia, SP, Brasil. Recuperado de http://www.sbf1.sbfisica.org.br/eventos/epef/xii/sys/resumos/T0183-1.pdf
Martins, I.,& Ogborn, J., & Kress, G. (1999). Explicando uma explicaçao. Ensaio: Pesquisa em Educaçâo em Ciências, 1(1), 29-46. Recuperado de http://www.portal.fae.ufmg.br/seer/index.php/ensaio/article/view/8/28
Moraes, R. (1999). Análise de conteúdo. Educaçâo, Porto Alegre, 22(37), 7-32. Recuperado de http://cliente.argo.com.br/~mgos/analise de conteudo moraes.html
Pietrocola, M. (2014). Bachelard e a Filosofía do Nao. In: Magalhaes Jr., C. A. O., Lorencini Jr., A., Corazza, M. J. (Orgs.) Ensino de Ciências: múltiplas perspectivas, diferentes olhares. (79-98). Curitiba: CRV.
Ramsey, J. (1993). The science education reform movement: implications for social responsibility. Science Education, 77(2), 235-258. doi: 10.1002/sce.3730770210
Sahlins, M. (1985). Islands of history. Chicago: The University of Chicago Press.
Santos, W. L. P. (2007). Educaçâo científica na perspectiva de letramento como prática social: funçôes, principios e desafios. Revista Brasileira de Educaçâo, 12(36), 474-492. doi:10.1590/S1413-24782007000300007
Schutz, A. (1962). On Multiple Realities. In Collected Papers, Vol. I: The Problem of Social Reality. (207-259). The Hague: Martinus Nijhoff.
Sewell, W. H. Jr. (2005). Logics of history: social theory and social transformation. Chicago: The University of Chicago Press.
Silva, M.R. (1998). Realismo e anti-realismo na ciência: aspectos introdutórios de uma discussao sobre a natureza das teorias. Ciência & Educaçâo, 5(1), 7-13. doi: 10.1590/S1516-73131998000100002
Tiercelin, C. (1999). Verbete "Realisme". In Lecourt, D. (Org). Dictionnaire d'histoire et philosophie des sciences. Paris: Puf.
Tobin, K., & Ritchie, S. M. (2012). Multi-Method, Multi-Theoretical, Multi-Level Research in the Learning Sciences. The Asia-Pacific Education Researcher, 21(1), 117-129.
Whitaker, D.C.A., & Bezzon, L.C. (2006). A Cultura e o Ecossistema: reflexôes a partir de um diálogo. Campinas: Ed. Alínea.
Recebido em: 13.08.2016
Aceito em: 31.10.2016
Fábio Marineli [fabiomarineli@ufg.br]
Universidade Federal de Goiás, Regional Jataí
BR 364, Km 195, n° 3800, Jataí, GQ, Brasil
Maurício Pietrocola [mpietro@usp.br]
Universidade de Säo Paulo, Faculdade de Educaçao
Av. da Universidade, 308, Cidade Universitária, Säo Paulo, SP, Brasil
You have requested "on-the-fly" machine translation of selected content from our databases. This functionality is provided solely for your convenience and is in no way intended to replace human translation. Show full disclaimer
Neither ProQuest nor its licensors make any representations or warranties with respect to the translations. The translations are automatically generated "AS IS" and "AS AVAILABLE" and are not retained in our systems. PROQUEST AND ITS LICENSORS SPECIFICALLY DISCLAIM ANY AND ALL EXPRESS OR IMPLIED WARRANTIES, INCLUDING WITHOUT LIMITATION, ANY WARRANTIES FOR AVAILABILITY, ACCURACY, TIMELINESS, COMPLETENESS, NON-INFRINGMENT, MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR A PARTICULAR PURPOSE. Your use of the translations is subject to all use restrictions contained in your Electronic Products License Agreement and by using the translation functionality you agree to forgo any and all claims against ProQuest or its licensors for your use of the translation functionality and any output derived there from. Hide full disclaimer
Copyright Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Física Dec 2016
Abstract
In this research, we present an investigation about the ways by which undergraduate physics students understand the reality of scientific entities and entities that belong to other spheres such as religious and daily life. We adopt a theoretical approach of culture that highlights the influence of several cultural systems on the ways of understanding the world and that allows conceiving science as one of such systems Culture is understood here from characterization proposed by Sewell (2005), as a set of overlying structures, each one consisting of schemes and resources. From this perspective, scientific learning would be a kind of immersion in a new culture, being a process that is subject to influences of other cultural structures which brings other approaches and ways of understanding the world. This influence can be observed even in the comprehension of ontological aspects of scientific knowledge, particularly in understanding the reality of unobservable scientific entities. In this study, we used a questionnaire in which the physics undergraduate students assigned an "intensity of reality" to entities belonging to different cultural contexts and presented a justification to this assignment. Among the results obtained in our work, we highlight the possibility of more than only one interpretation about the criteria used by students to justify the reality of scientific entities, including that these criteria seem to be influenced by cultural structures whose origin is the everyday life.
You have requested "on-the-fly" machine translation of selected content from our databases. This functionality is provided solely for your convenience and is in no way intended to replace human translation. Show full disclaimer
Neither ProQuest nor its licensors make any representations or warranties with respect to the translations. The translations are automatically generated "AS IS" and "AS AVAILABLE" and are not retained in our systems. PROQUEST AND ITS LICENSORS SPECIFICALLY DISCLAIM ANY AND ALL EXPRESS OR IMPLIED WARRANTIES, INCLUDING WITHOUT LIMITATION, ANY WARRANTIES FOR AVAILABILITY, ACCURACY, TIMELINESS, COMPLETENESS, NON-INFRINGMENT, MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR A PARTICULAR PURPOSE. Your use of the translations is subject to all use restrictions contained in your Electronic Products License Agreement and by using the translation functionality you agree to forgo any and all claims against ProQuest or its licensors for your use of the translation functionality and any output derived there from. Hide full disclaimer